Crítica
LILI, A RAPARIGA DINAMARQUESA
Tom Hooper não é Marty McFly nem Dr. Emmett Brown, mas viajou até à Dinamarca dos anos 20, trazendo consigo uma história que merecia ser contada. Baseado no livro de David Ebershoff, “A Rapariga Dinamarquesa”, apresenta-se como uma adaptação à realidade de Lili Elbe, a primeira mulher transexual a submeter-se a uma cirurgia genital.
O tema, por si só, já é bastante delicado. Não me refiro à (falta de) aceitação que infelizmente ainda existe em grande número, refiro-me antes à complexidade que envolve a transgeneridade. Viver num corpo que não é o seu, tentar adaptar-se a uma realidade que tem de ser a sua. É esta a vida de Einar Wegener, interpretado por Eddie Redmayne, no início do filme já casado com Gerda Gottlieb, uma pintora que conhecera quando estudava na Royal Danish Academy of Fine Arts.
É com Gerda que Einar veste pela primeira vez roupa feminina com a finalidade de ajudar a mulher a terminar uma obra para a qual não tinha modelos disponíveis. É através da roupa que o realizador decide mostrar a vontade da personagem principal se tornar livre de uma identidade que desde sempre fora a sua; o toque de uma seda, a leveza de um tule e a suavidade de uns collants transmitem a fragilidade que Wegener começara a sentir.
Apesar de grande parte dos críticos terem apontado para uma banalização do papel feminino através da valorização dada por Lili Elbe a todos os adereços femininos, sou obrigada a discordar. Permitam-me a sinceridade, mas chego a considerar essa visão tão redutora quanto aquela que diz que toda a moda é fútil. Se Lili está a descobrir-se como mulher, é natural que fique deslumbrada com a quantidade de saias, vestidos, sapatos, blusas e até perucas ou maquilhagem que a deixem ficar com uma aparência que reflita o seu ideal de beleza, e mais importante, que seja o espelho da sua alma.
Se Redmayne me tinha deixado rendida à vida que deu a Stephen Hawking em “A Teoria de Tudo”, aqui ajudou-me a refletir no papel que teve não só como ator mas também como homem. Digam o que disserem, não era qualquer estrela de Hollywood que tinha sensibilidade para interpretar a miss Elbe. Nota-se, ao longo de todo o filme, que houve uma entrega à personagem que vai além do expectável. Se Eddie Redmayne “passa a vida a piscar os olhos” e “pouco fala”, acredito que faz parte de toda a sua entrega; acredito que, numa fase inicial, mais do que muito para dizer, um transgénero tem muitos assuntos em que pensar e muitas batalhas a travar consigo mesmo.
A nível técnico, os pontos fortes são a fotografia, que quase parece uma pintura pela delicadeza e tratamento de luz, e os cenários e guarda-roupa, que nos permitem seguir na viagem no tempo de Tom Hooper até aos loucos anos 20.
Mais do que um marco no cinema LGBTI, “ A Rapariga Dinamarquesa” é um alerta. Um alerta para os que aceitam, mas não se põe na pele do outro, um alerta para os que não aceitam e não querem aceitar, um alerta para a consciência de todos nós que temos constantemente de reeducar.
Porque mais do que transexual, Lili foi uma rapariga dinamarquesa com uma nova vida pela frente. E há tantas Lilis neste Mundo!…