Crónica
ELA NÃO ME É ESTRANHA
Ela gosta de acordar uma hora antes do previsto para poder pensar que ainda tem mais tempo para dormir. E gosta de puxar a almofada para cima, passar-lhe o braço por baixo, amaciar os lençóis e retomar o sono.
Quando acorda e vê que está sol, ela gosta de tomar o pequeno-almoço com as persianas abertas a ver passar gente e a ver passar vidas.
Mas ela também não se importa que estejam dias chuvosos desde que não tenha de sair de casa e possa enroscar-se no sofá a ler livros e a deixar-se empurrar para o estado de dormência (estado encoberto, como o tempo lá fora).
Ela gosta quando vê velhinhos de mão dada, a cochicharem sobre uma história só sua.
Ela faz coisas estranhas como passear-se sozinha pelos supermercados a fingir que é adulta ou comer croissants de chocolate depois de um teste que correu mal.
Ela gosta que lhe perguntem qual é o seu tipo de música favorita e de descobrir pessoas que estão a ler o mesmo livro. E gosta que a levem ao cinema e que fiquem indecisos se hão-de comprar pipocas doces ou salgadas.
Ela adormece em todas as viagens de autocarro, mas acorda invariavelmente a tempo da chegada (até ao dia em que se deixe ir, embalada pelo movimento do autocarro, até à última paragem).
E se me reconheço nestas bizarrias é só coincidência. Apesar dela não me ser estranha.
(Escrito ao som de “Australia” de Conner Youngblood)