Desporto
DECO : O CANARINHO LUSITANO
Um dos jogos particulares opondo Portugal a Brasil que maior expetativa gerou foi o encontro realizado no Estádio das Antas, no dia 29 de Março de 2003. Várias razões explicam a ânsia em torno desta partida de futebol. Uma das principais causas deste rebuliço mediático era o facto de o selecionador da “equipa das quinas” ser o anterior técnico principal do Brasil, o “sargentão” Luiz Filipe Scolari, que conquistou o penta Campeonato Mundial para os canarinhos. O técnico brasileiro gerou um difícil relacionamento com diversas personalidades e instituições do futebol português. À semelhança do que havia feito com o “proscrito” Romário no Mundial 2002, excluiu dos 23 convocados para o Campeonato da Europa 2004 o conceituado e pluri titulado Vítor Baía, guarda-redes do Futebol Clube do Porto. Esta decisão não foi consensual e originou muita discordância para com o selecionador que nunca usufruiu de um apoio incondicional no exercício das suas funções em Portugal.
Outra decisão muito polémica foi a primeira convocação de Deco, futebolista brasileiro que representava o FC do Porto. A naturalização deste jogador não agradou aos adeptos e a muitos colegas de equipa. O primeiro a demonstrar publicamente a sua discordância foi Rui Costa, declarando a sua oposição relativamente à incorporação de jogadores naturalizados. A frase de Luís Figo: “Os hinos não se aprendem, sentem-se…» resume este mal-estar generalizado. O selecionador do Brasil, Carlos Alberto Parreira, confrontado com a perda de um jogador da qualidade de Deco para as “trincheiras” portuguesas, afirmou nos dias que antecederam o encontro: “Jogadores como Deco há aos milhares no Brasil.”.
Num Estádio das Antas bem composto, numa noite muito chuvosa, estreou-se pela seleção nacional portuguesa o “mágico” Deco. A ausência de Figo, supostamente devido a lesão muscular, motivou muita especulação. Algumas informações veiculavam que o capitão se recusou a jogar devido à inclusão de Deco. Não existiu confirmação dessa notícia e Luís Figo voltou à equipa alguns dias depois num jogo com a Macedónia e o assunto polémico esmoreceu.
A equipa portuguesa entrou muito personalizada em campo, com muita consistência, impondo um ritmo muito elevado à partida, o que lhe valeu um golo nos primeiros minutos apontado pelo avançado Pedro Pauleta. O Brasil reagiu de imediato, apoiando-se no “génio” do “dentuça” Ronaldinho Gaúcho, na qualidade de Rivaldo, no “fenómeno” Ronaldo e no “pontapé canhão” de Roberto Carlos, os 4 “R´s” da “amarelinha”. Rivaldo e Roberto Carlos aplicaram o seu potente “tiro” de esquerda, acertando diversas vezes nos postes, e obrigaram o guarda-redes português Ricardo a inúmeras “paradas” de elevado grau de dificuldade.
Na segunda parte o Brasil empatou com um golo de penálti convertido por Ronaldinho Gaúcho, que havia sofrido falta de Simão Sabrosa. A “turma” nacional forçou a vitória no jogo, fazendo entrar Deco por troca com Sérgio Conceição aos 70 minutos do segundo tempo. A extraordinária capacidade técnica deste atleta ficou patenteada no golo de livre direto que marcou aos 82 minutos de jogo. Os derradeiros momentos da partida foram disputados a um ritmo alucinante, com o Brasil a procurar “desesperadamente” o empate, provando a rivalidade e competitividade luso-brasileira.
O “golaço” do “número 10 melhor que o Pelé” amenizou a turbamulta reticente que nunca mais se insurgiu contra a utilização deste brilhante organizador de jogo.
No dia seguinte à peleja, os periódicos portugueses deram amplo destaque ao acontecimento, contrastando com a imprensa escrita brasileira que preferiu quase ignorar o assunto. Porém, em ambos os lados do Atlântico, verificamos um desejo de posse relativamente ao jogador. Nos jornais brasileiros escrevia-se: “Foi do Brasil” (in folha de S. Paulo) e “Dois brasileiros brilharam” (in Jornal do Brasil). Nos diários portugueses congratulava-se a nova pátria do futebolista: “O patriota Deco” (in O Jogo, 30 de Março de 2003), “É nosso” (in A Bola, 30 de Março de 2003), “Olé, Olé na noite dos mágicos” (in O Jogo 30 de Março de 2003), com Scolari a merecer igualmente “rasgados” elogios: “O criador derrotou a criação” (in Público, 30 de Março de 2003).
Este contraste sentimental entre a perda brasileira e o proveito português, em torno do magnífico jogador, demonstra um grande respeito pelo mesmo. Deco, brasileiro de “coração” e nascimento, tornou-se português de ”adoção” e “crescimento”. Retirado esta época do futebol, granjeou respeito de ambos os lados. Não perdeu nem ganhou uma nacionalidade, aglutinou-as num “empate técnico” de sentimento.
Pedro Marques Pinto
23/06/2014 at 18:50
Caro David,
Este percurso biográfico que traças do Deco parece-me exacto e rigoroso. Longe vão os tempos em que a selecção nacional disputava e vencia jogos amigáveis com o Brasil dos quatro R’s. Neste mundial, está condenado a repetir a fraquíssima exibição que protagonizou no mundial de 2002, quando, julgo, nem sequer teve argumentos suficientes para passar a fase de grupos. Longe também vão os tempos em que a selecção portuguesa tinha uma equipa tão sólida e bem pensada quanto essa que defrontou um Brasil acabado de ganhar o mundial, com jogadores de elite como Deco, Figo, Rui Costa ou Pauleta. Não me oponho ao facto de jogadores nascidos e criados numa determinada nação, como é o caso do Deco que aqui referes, se naturalizem (este termo é, no mínimo, ambíguo) a fim de poderem actuar juridicamente por uma outra selecção nacional que não é a sua. Podemos pensar, por exemplo, na selecção francesa que ganhou o mundial de 1998. Só o guardião Barthez, em termos de titulares, tinha nascido e sido criado na “pátria” francesa, pelo menos à luz de uma concepção eurocêntrica. Todos os outros jogadores gauleses eram fruto de uma geração que nascera e vivera nas antigas colónias francesas da África Ocidental, entretanto emigrados para a França xenófoba que hoje conhecemos. Deco foi um grande jogador, na selecção portuguesa, no Porto, no Barcelona. Por onde passou, irradiou espectáculo, confiança e segurança no meio-campo. Não duvido que a chamada do Deco à selecção nacional tivesse sido influenciada pelo então novo seleccionador Luiz Filipe Scolari, que sempre me pareceu melhor treinador do que pessoa. Mas essa convocatória não justifica afirmações tão (como direi?) patrióticas da parte do capitão Luís Figo, supremo timoneiro das naus portuguesas a haver, cujo orgulho ferido é abertamente declarado. Quem iria gostar da integração do “mágico número 10” na selecção lusa seria o nosso querido ditador Oliveira Salazar, que, ao observar a constituição desta selecção, ficaria com certeza feliz por assistir à concretização do seu império sonhado numa base multirracial e pluricontinental, encarando com paternalismo a adesão do brasileiro ao todo nacional orgânico e indivisível, através de um processo de miscigenação benevolente da exemplaríssima colonização portuguesa. A parte estes devaneios, o certo é que Deco inscreveu o seu nome e glória na história da selecção pátria, seja brasileiro, kosovar ou tibetano.
Cordiais cumprimentos cronista David
David Guimarães
23/06/2014 at 19:49
Amigo Pedro Marques Pinto,
Novamente uma observação brilhante! Apelido as tuas intervenções de “pequenas pérolas filosóficas” metamorfoseadas em riquíssimas e profundas nótulas. Gostava que me ladeasses neste jornal com uma crónica em “nome próprio”.
Um caloroso abraço!
Maurício Moraes
01/07/2014 at 13:47
Excelente matéria e duas colocações:
1ª para o Figo – independente do certo ou errado de se convocar jogadores naturalizados, estes podem com certeza amar e defender tão bem um país quanto os que nele nasceram.
2ª para o Felipão – A participação e inclusivamente o gol feito pelo Deco, responderam com propriedade a arrogância do Felipão.