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Cultura

O ESPELHO ENFRENTA O HOMEM EM OTELO

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Pela segunda temporada no Teatro Nacional São João, Nuno Carinhas trouxe a complexidade Shakespeariana para perto – literalmente, com atores iniciando a peça aos gritos na lateral da plateia que se assustou e riu em seguida ao tê-los sentados nas cadeiras em pleno ato – com pecados capitais no cerne da trama e o público como cúmplice. Assim como o próprio encenador disse, Otelo é um “teatro de excessos”, abordando também outros temas universais como traição, ciúme, vingança e carência.

Com cenário minimalista – mais que suficiente, devida a evidente beleza do teatro – e banda sonora que mais pareciam gotas precisas em cenas de tensão, Otelo surpreendeu.

Minutos antes do início, pôde-se ouvir espectadores comentando: “quem será que ele matará desta vez? Shakespeare sempre mata alguém”. E mesmo se tratando de uma obra clássica, muitos ali não a haviam lido, mas nem por isso ficaram perdidos; apesar da linguagem rebuscada, a peça contextualizou bem os leigos, com tradução e versão cénica de Daniel Jonas, ainda contou com legenda em inglês acima do palco, mesmo que arcaico – típico de Shakespeare.

Racismo, xenofobia e violência doméstica são o que mais ouvimos nos media atualmente, e parece que Shakespeare sabia disso ao escrever essa peça em 1604. Otelo fala da humanidade e como é fácil alcançar extremos. Sentimentos e ações inerentes ao homem são explicitadas no espetáculo com duração de 2h45min (com intervalo), no qual se pôde  ver espectadores intrigados e curiosos debruçados ao manual de leitura que lhes foi entregue no início – que mais se assemelha a um livro, por sua grossura e rico conteúdo, cheio de entrevistas e textos de apoio dos produtores e atores da peça – em busca de algum spoiler ou explicação do que estava por vir no segundo ato. Outros aproveitam o intervalo para tirar fotografias.

O intervalo acaba e as luzes se apagam, novamente trazendo o público ao universo do mouro e seu ciúme estúrdio. As cenas de Dinarte Branco, que interpreta Iago, manipulador e pivô de todos os acontecimentos da trama, são intensas. Cheias de comentários sarcásticos e preconceituosos (infelizmente aceites na época da trama), os olhares do ator são acentuados pela luz direcionada a seu rosto e a entoação transparece o desatino obsessivo do personagem.

António Durães, que interpreta Brabâncio e Graciano, mesmo aparecendo em poucas cenas, deu um show de atuação com expressões faciais genuínas de um pai dececionado com a filha. Nos primeiros minutos da trama já se percebe a densidade de seu personagem. Convenções sociais foram entendidas pela plateia sem alguma palavra, apenas com gestos.

Apesar de ser uma tragédia clássica, rendeu algumas risadas com diálogos sexualizados, danças e cantorias estrambólicas. Embora Maria João Pinho, que interpreta Desdémona, tenha cantado brevemente em uma cena e encantado os presentes.

O figurino misturou o antigo ao contemporâneo com blazer de veludo, shorts de couro e calças em mulheres; estas, que, na peça, sofrem do começo ao fim abusos físicos e psicológicos dos homens, afloram o que poderia ser a semente do feminismo, em diálogos que enfrentam pais, maridos e mostram como hoje ainda mantemos os mesmos comportamentos de há 400 anos, reprimindo, abusando e objetificando as mulheres.

Otelo explicita o homem, podre e inconstante. Mostra o que o ser humano pode fazer ao ter o ego ferido – quão inconstantes e manipuláveis nós somos. Fala ao público durante todo o tempo, desperta identificação, mostra nossa natureza doentia ao simpatizarmos com personagens tão errados e problemáticos. Mostra o honesto virar criminoso, o amor virar ódio e o respeito virar agressão. O ser humano é posto em “preto e branco”, simples, cruelmente exposto e sem floreios, assim como as intimidades dos personagens expostas em cena. O racional flerta com a loucura e o público é cúmplice.

A trama contou com a participação também de Diana Sá como Bianca, Joana Carvalho como Emília, João Cardoso como Otelo, Jorge Mota como o Duque e o Bobo, Paulo Freixinho como Rodrigo, Pedro Almendra como Montano/Ludovico e Pedro Frias como Cássio.

O espetáculo encerrou por volta das 23h45 com chuva de aplausos que rendeu três retornos dos atores ao palco, e que esperaram de mãos dadas o público de pé parar seu reconhecimento. Otelo fica em cartaz até dia 20 de janeiro.

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