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Crónica

DESCRIÇÃO FAMILIAR

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Sento-me à porta do prédio da rua da casa da minha avó, sob um pedaço de mármore branco e frio. Olho em redor, para a extensão imensa que a vista alcança do firmamento em ambas as direções. O sol, ao alto, reluzia, onde certamente se desenrolam outros concílios, desta vez para permitir a minha eloquência na descrição daquilo que vislumbro neste momento.

Chegara ao pé de mim um indivíduo alto, escanzelado, cabelo curto de cor castanha, com uma face que me era familiar. Seria o meu alter-ego? “Sei lá se tenho disso” – pensei. O brilho da fileira de carros estacionados à nossa frente de forma perpendicular não me permitiu observar com certeza a figura que diante de mim se elevava. Sentou-se ao meu lado. Dissera-me que o prédio da frente, onde no piso zero antigamente tinha um portão azul de metal, pertenceu a uma fábrica de chocolate. Os tempos agora são outros. Ao invés desse portão, havia umas grades cinzentas que formavam quadrados, com vidro por dentro. “De fábrica de chocolate a lar de idosos, já viste?” – dissera-me. O resto desse prédio prosseguia numa monotonia, tanto em termos de cor como de formato, não havendo mais que três andares com oito janelas em cada um, na horizontal, todas de vidro, de proporções quase de um homem alto, com bonitas cortinas onduladas por dentro. Embora a cor desse prédio fosse a de cinzento escuro, pelo menos, não estava em tão mal estado como a cor gasta amarelada do prédio à sua direita – também de três andares, todos iguais, com uma varanda do formato de um semicírculo, onde duas janelas davam entrada para as varandas. Os canos e os fios que percorriam o prédio estavam entrelaçados e continuavam para os prédios seguintes. Em baixo, no andar zero, um bazar modesto, repleto de revistas e jornais no seu exterior, com um vidro enorme a demonstrar a sua montra com as mais variadas traquitanas. Debaixo da placa que indica o nome da tabacaria existe uma pequena bandeira de jogos da sorte.

Todavia, sorte era o que eu não tinha, porquanto, ao mesmo tempo que escrevia o que visualizava, o som contínuo dos motores dos automóveis que passavam sem cessar o macadame quente, cujo mesmo luzia aos pontinhos devido dos componentes químicos colocados na criação da tal massa, e o odor que provinha dos gazes emitidos pelos carros, tornavam cansativa a minha estadia lá. Ainda por cima estava encanzinado de ter de aturar o sujeito ao meu lado que ainda não se tinha identificado.

Não havia aragem. Levanto-me e aguardo, parado, uns bons dois minutos até que os inúmeros veículos se sumam para que possa chegar ao lado das casas já descritas. Atravesso as duas faixas de rodagem com cautela. Finalmente, chego ao outro lado. A azáfama de pessoas no passeio, calcam a minha concentração. Olho para a frente. Miro o prédio da minha avó. Concluo que o prédio à esquerda é uma cópia exata do da minha avó, como se de um gémeo siamês se tratasse. Por debaixo do prédio, uma loja de artigos usados, cuja placa com o logótipo com lobos azuis e brancos separava a loja dos dois prédios. Os prédios assentavam-se perfeitamente na loja, como peças de Lego. As duas portas para os prédios, interrompiam a continuidade de vidros da montra da dita loja. Ao cimo, as paredes dos prédios eram de azulejos velhos, também com uma cor cinzenta. Saíam dele quatro varandas, sendo separadas por janelas que estavam entre elas. Em todos os três andares a lógica era a mesma. A repetição estética nos prédios era evidente. As persianas brancas das janelas não seguiam uma posição semelhante, uma vez que cada uma estava ao Deus dará. Notava-se, ainda, a oxidação nos ferros que constituíam as varandas. Tratava-se, claramente, de um prédio com imensos anos de construção.

Do lado direito, um simples supermercado com notória falta de interesse para ser aqui referido. No entanto, o supermercado dava pela altura do primeiro piso do prédio da minha avó. Curiosamente, a minha avó mora nesse piso, do prédio ligado ao supermercado. Olho para a janela da minha avó. Encontra-se cerrada, não obstante, tivesse com a persiana puxada quase até cima. Recordo os momentos em que era criança e estava lá com a minha avó a ver os carros que passavam e a aguardar que o meu avô chegasse da sua ida à sede do seu clube de basquetebol predileto. As memórias flutuam na minha mente. Fito sem cogitar a janela. Quando dou por mim, sobressalto por constatar que o tal indivíduo do início está ao meu lado. Olha para mim e interroga-me:

– Já que estamos na rua da minha avó, por que é que não vais lá a cima dizer-lhe olá e dar-lhe um beijinho?

– Porque ela hoje não está em casa. Espera… Da tua avó? Ela é minha avó. Mas, afinal, quem és tu?

– Sou o teu alter-ego.

Tinha razão, afinal de contas. Agora estávamos juntos na sombra, por causa do tamanho dos prédios da rua oposta à que principiou esta produção escrita, e a sua estatura e feições eram exatamente iguais às minhas. Só podia ser o meu alter-ego, visto que não tenho irmãos gémeos (que saiba). Tenho de começar a beber mais água para não sofrer alucinações.

Chegou-se até mim e proferiu:

– Aquela referência do Concílio dos Deuses, no princípio deste texto, foi completamente desnecessária, tu és ateu. Foi só para te armares em esperto, não foi?

Não respondi. Embirrei com o meu alter-ego e fiquei com receio que ainda me aparecesse uma consciência como daquelas inventadas por Carlo Collodi. Não aprecio insetos. Lá me disse:

– Chega de tanta tentativa – falhada, há que dizê-lo – de descrição à Zé Maria.

– Quem é esse? – questionei.

– É Eça de Queiroz, ó néscio! Vamos dar uma volta.

 

Miguel Barbosa

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