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Cultura

“SER OU NÃO SER”, COMO NUNCA TINHA SIDO

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O Teatro Experimental do Porto (TEP) conseguiu conjugar todos os fatores para o público já entrar em cena intimidado. No bilhete, lê-se “O Dia da Matança da história de Hamlet, Bernard-Marie Koltès”, e é indicado o “Palco do Grande Auditório”. Surge aquela interrogação inevitável: Palco? Como se não bastasse a prepotência de ser uma versão da mais complexa tragédia do complexo one and only Shakespeare, o público vai sentar-se não refastelado, mas ali, próximo, no espaço intimista que é o Palco do Rivoli.

Koltès reescreveu Shakespeare e retirou do original para o seu texto apenas o que lhe interessava. Quem conhece a obra sabe que ,inicialmente, procuramos o Shakespeare que vive em Koltès mas – tal como sublinha António Júlio, encenador da peça – acabamos por “encontrar Koltès em Shakespeare”, e aí vemos com outros olhos o novo recorte. Koltès acelerou, Koltès eliminou, Koltès evidenciou. Mas Koltès fez jus, como poucos, a Hamlet.

Todo o enredo surge concentrado num só dia, e todos os acontecimentos que precedem a condenação final são precipitados até à derradeira ruína do trono da Dinamarca. São suprimidas muitas personagens, e Koltès resgata apenas quatro – Hamlet, Ofélia, Gertrud e Claudius – mas, embora ausentes, há ecos de todas as vozes. Atentos leitores de Hamlet saberão reconhecer falas trocadas e dizeres de uns na boca de outros – o que, se por um lado esclarece, por outro evidencia a loucura, a estranheza e o todo-fragmentado que são as figuras shakespearianas.

“Não me calarei enquanto este lugar não parecer um campo de batalha”, anuncia Hamlet. E assim é. Um cenário empilhado e organizado decompõe-se e desarruma-se ao se acompanhar o crescer da tensão familiar e do jogo de vingança. Hamlet rasteja e bate com a cabeça. Ofélia deambula e vai-se despindo. Gertrud faz perguntas e torna-se ele próprio uma pergunta. Claudius evolui e explode. Todos terminam estendidos no chão.

António Júlio, com um olho contemporâneo e extraordinariamente necessário no panorama teatral de hoje, conseguiu que este seu “Dia da Matança” fosse uma dança. Se, em muitas cabeças, Shakespeare é teatro renascentista, com uma fisicalidade irreal, António Júlio provou que o seu Shakespeare é teatro intemporal, coreografado, e que a irrequietude dos pensamentos das personagens pode, de forma belíssima, ser transposta para o corpo dos atores e os seus movimentos.

Três dias em cena, entre 15 e 17 de março, e três sessões lotadas. Muitos não vêm porque têm medo da inteligência confusa de Shakespeare. Mas não tenham… Nem tenham medo das experiências arriscadas de Koltès. Nem da interpretação enraivecida e caótica de António Júlio. Nem da expressividade arrepiante de Paulo Mota, Júlia Valente, Maria do Céu Ribeiro e Paulo Calatré. Não tenham medo do ambiente pesado e escuro que a luz, o som, o cenário e os figurinos conseguiram criar. Se não viram este Dia, para a próxima não tenham medo. O TEP dá-nos sempre vontade de deixar o medo em casa, enfiado na gaveta. E Hamlet dá-nos sempre esperança de que sejamos mais do que aquilo que não somos.

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