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Cultura

A PRIMAVERA (SELVAGEM) DA VIDA É BONITA DE VIVER

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As pessoas vão ao teatro para entrar dentro de uma história. Se pensarmos que cada história é uma casa, nenhuma história onde ficamos à porta é bem contada. Primavera Selvagem, uma história sobre a vida de uma atriz, só poderia ser contada e escutada com os espectadores em palco. No seu palco. No querido palco de todos os atores, no sempre imponente palco do Teatro Nacional São João – que, simultaneamente, consegue ser palco, camarins, casa e praia. A verdade é que um palco pode ser tudo, e a vida de ator também.

Gertie, interpretada de forma sublime por Emília Silvestre, é uma atriz para quem os holofotes, as palmas e os prémios (logicamente) não enchem a felicidade. Numa primeira metade da peça, rende-se a Sam (Afonso Parra), um arrumador de carros, com metade da sua idade, de etnia cigana, que finge ser ignorante – embora o fingimento seja o ofício dos atores. Passam-se quinze anos, e Gertie – com a mesma autodepreciação, as mesmas inseguranças, perguntas, manias, tiques e temas de conversa – vê-se, agora, acompanhada por Kennedy (José Eduardo Silva), um diretor de uma companhia de teatro, homem sério, amante de dinheiro, que acha que nasceu para ser artista – apesar da falta de talento.

No fundo, ali a um metro de nós, estão três personagens mundanas e perfeitamente credíveis. Com discursos e diálogos filosoficamente interessantes, ritmados, mas banais. Pessoas cuja história foi escrita, por Deus, em linhas demasiado tortas (como a história de toda a gente).

Na Primavera há mutação, e na Selva há incerteza. Curioso como na vida há, constantemente e em paralelo, as duas malditas coisas. Esta Primavera Selvagem é, precisamente, um reflexo da vida. Um ensaio da vida como exercício de auto-encenação, que prova que somos todos valentes encenadores. Em francês, a palavra ensaio – que é um chavão na gíria artística – diz-se répétition. E é verdade. No ensaio repete-se, e na vida repete-se (embora a vida seja um ensaio para não haver estreia). Mas é inegável que todos – os atores, os arrumadores de carros, os diretores e todos os outros, desde médicos a bombeiros, de pintores a advogados – andamos a fazer teatro. Andamos a fingir, a mentir, a enganar os que nos rodeiam. Sentimos coisas estranhas, citamos palavras de outrem, somos rejeitados, choramos, temos problemas e crises de identidade tremendas. Adoramos ver isso no teatro, mas detestamos sentir isso na pele. Adoramos teatro, mas não conseguimos aceitar que o andamos a fazer. E, por isso, talvez sejamos só pessoas más. Más, não… Sós.

Sam desaparece e Kennedy anuncia o despedimento de Gertie. A atriz – que, não esquecendo, é também uma pessoa, uma mulher, mãe, filha, crente, amante, sonhadora – acaba só, sozinha, a dançar. Mais uma vez, acaba apaixonada pela ideia errada de si mesma. “Gostava de poder fazer tudo outra vez. Mas melhor. Infinitamente melhor.” Receio que não possas, Gertie. Ninguém pode. Porque, lá está, só temos um único ensaio.

Artigo da autoria de Inês Sincero.

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