Cultura
AUTO-ACUSAÇÃO: O EU QUE SOMOS NÓS
Em 2001, também no Teatro Rivoli, sobe a cena I said I, um espetáculo maioritariamente dançado, inspirado no texto de Peter Handke, Self-Accusation. Nessa data, na plateia, estava Joana Providência – uma das mais brilhantes coreógrafas portuguesas. “Fiquei imediatamente com vontade de fazer a peça”, confessa a artista ao JUP, “mas precisava de alguém que trabalhasse a palavra”. É como resposta a esta inquietação que surge Maria do Céu Ribeiro. Juntas pensam e constroem e, 18 anos depois, apresentam-nos o que nem sabiamos precisar.
Numa simbiose arrepiante entre o corpo e o texto, Auto-Acusação é uma estalo na face da vida. É um daqueles estalos que vamos lembrar, quando formos mais velhos, e nos pedirem para contar a história de um estalo. Já levamos uns com mais força (de um pai robusto ou de uma tia histérica), e já outros nos doeram mais (por serem dados sem aviso prévio). Mas, desta vez, sabiamos que nos iam bater. Só que nunca, ninguém, o tinha feito de forma tão merecida e necessária.
No palco, eles são cinco. Eles vestem roupas leves, de cores pastel, como se fossem pessoas felizes e bem resolvidas. Mas, depois, eles andam, correm, param. Eles falam, gritam, ouvem. Eles empurram, puxam, pensam e acusam. Eles olham-nos nos olhos. Eles, que são cinco corpos, diferentes, e até falam línguas diferentes, mostram que são um só. Eles somos Nós, uma sociedade inteira, e Eles sou Eu.
É difícil escolher para quem e para onde queremos olhar, e é ainda mais difícil assimilar tudo o que queremos ouvir. Identificamo-nos de forma tão intensa, e sentimo-nos de tal forma atacados, que é estranho pensar que, no fim, estamos a aplaudir a nossa própria, pouco questionada, vida.
Auto-Acusação pertence ao leque literário que se denomina por Peças Faladas, ou seja, “textos que não são convencionalmente dramáticos, mas são feitos para serem apresentados em teatros”, esclarece Joana Providência. Porquê um deles, agora? Porque sim é, pela primeira vez, uma boa resposta. O público de hoje não vive só de clássicos, de histórias inventadas com principio, meio e fim, com as quais se identifica indiretamente. As pessoas de agora, às vezes, precisam que lhes seja atirada a verdade à cara, e que a quarta parede do teatro seja quebrada com mestria, para que saibam que é para nós que se faz arte. É pertinente recuperar esta peça-sentença, “porque consegue lançar questões nas quais nos conseguimos rever, ainda hoje em dia”, apesar de Peter Handke se ter auto-acusado em 1966.
Tudo gira em torno do “Eu”. No fundo, também à semelhança da (triste) vida. Mas “aquele Eu, é um Eu de Humanidade, é uma partilha do sujeito” – esclarece a dupla criadora. Sentimos que fazemos parte de um todo, e aplaudimos, satisfeitos pela boa arte… Embora tristes, porque tudo o que ouvimos e vimos é pura verdade, só que bem dita e bem coreografada. Que daqui a outros 18 anos, nos auto-acusemos de outras coisas, e saiamos da sentença viciosa.
Artigo da autoria de Inês Sincero.