Cultura
NATIONAL GEOGRAPHIC EXODUS AVEIRO FEST: “FAÇAM A REVOLUÇÃO ACONTECER”
Como em qualquer boa conversa, é preciso um moderador que nos impeça de deambular pelas histórias, especialmente quando o tema é fotografia documental. Este fim de semana, essa pessoa foi Mathieu Palley, fotógrafo francês da National Geographic. O debate inicial começou com a apresentação dos oradores deste ano, abordando como e porquê cada um entrou para este ramo, a sua relação com as redes sociais, o estado da indústria fotográfica e, ainda, os perigos deste ofício e a desigualdade de géneros.
Bernardo Conde, que há três anos fundou o National Geographic Exodus Aveiro Fest, realçou o “poder de partilha” que o evento traz à comunidade fotográfica. No lançamento desta edição declamou a “Revolution” dos Beatles para alertar à necessidade de “mudança em cada um”, incitando a revolução através da paixão.
Exodus Talent
Uma das peculiaridades desta iniciativa relativamente recente é a promoção de talentos portugueses nas áreas de fotografia e vídeo. Independentemente do que fotografam ou gravam, ou como o fazem, os exodus talents são uma das grandes apostas do Exodus Aveiro Fest. Quatro jovens portugueses trouxeram a palco as suas melhores criações, para uns um ofício, para outros um hobby.
Ana Brígida, fotojornalista freelancer, apresentou os seus projectos de eleição. “93 Lisbon Policy” é um trabalho desenvolvido num bairro social nos arredores de Lisboa. Ana pretendeu retratar as injustiças sociais e condições de vida precárias de uma comunidade esquecida pela metrópole, à qual as casas foram retiradas. Curiosamente, o seu favorito é uma colectânea de fotografias que resultou de uma viagem às savanas africanas – “Binóculos na Savana”. Concluiu que tinha levado uma câmara com pouco zoom, mas isso não foi um impedimento, desenvencilhou-se com um par de binóculos sobrepostos à câmara do telemóvel e obteve fotografias muito próximas, recortadas pela forma circular do óculo.
José Ramos, por outro lado, é apenas fotógrafo nas horas vagas. Começou por explorar a fotografia de paisagem, nas viagens que fez a muitos pontos remotos e atractivos do planeta. Psiquiatria é a sua função principal, mas não tardou a compreender que poderia aliar as duas paixões. “On a Mission” é um projecto que surgiu na hipótese da fotografia poder atuar como terapia psiquiátrica. José concluiu que sim: a terapia fotográfica foi um sucesso com os seus pacientes e, rapidamente, preencheu o seu “vazio criativo” na profissão.
Se a psiquiatria parece distante da área fotográfica, então a física ainda mais. Ricardo Guerreiro, físico de profissão, teve o primeiro contacto com o mundo da fotografia através da natureza. Cresceu no Alentejo, onde fotografar animais e fazer documentários sobre a natureza se tornaram duas grandes paixões desde cedo. Destacaram-se dois dos seus projectos: “Arrábida – da Serra ao Mar” e “Almada, entre o Rio e o Mar”. O primeiro surgiu numa parceria entre amigos e rapidamente ascendeu a uma transmissão na SIC, em 2013. O segundo nasceu com o apoio da Câmara de Almada, que lhe deu a liberdade para retratar a vida animal da região.
Por último, Rúben Vicente, fotógrafo de viagens freelancer, trouxe ao painel recortes de quase cada canto do planeta. Birmânia, Islândia, índia, Japão, Marrocos e Veneza são alguns dos seus destinos de eleição para fotografar paisagens e culturas. Num universo onde a maioria dos fotógrafos capta os mesmos destinos, as mesmas paisagens, dos mesmos ângulos, Rúben diferencia-se pelo tratamento das imagens com justaposições. “Crónicas Soviéticas” foi um projecto que desenvolveu sobre a influência soviética na Arménia atual.
Profetas da Fotografia Errante
O primeiro dia ficou marcado pelas sessões da lusodescendente Danielle da Silva, o português Joel Santos, o fotógrafo de aventura Corey Rich, o fotógrafo de natureza Christian Ziegler e o australiano Daniel Berehulak.
Já no segundo dia, foi Mandy Barker quem estreou o palco com o seu projecto fotográfico feito através de plástico recolhido do mar. Seguiram-se os oradores Justin Mott, Krystle Wright, Veronique de Viguerie, Philip Lee Harvey e Frans Lanting.
Danielle da Silva começou por falar sobre as suas origens. Criada no Canadá, filha de mãe portuguesa e pai de descendência muçulmana, Danielle veste, agora, a sua multiculturalidade com orgulho, apesar de ter sofrido de racismo durante a adolescência. A colonização é um assunto que lhe é sensível e, grande parte do seu trabalho tenta retratar as populações afetadas por ela. Contudo, admitiu que “os humanos infligem mas também saram”, ao que a resposta do público foi uma ovação de pé. Como forma de aproximar os fotógrafos, e aspirantes, às metas de desenvolvimento sustentável da ONU, criou o programa Photographers Without Borders – uma plataforma de viagens fotográficas com propósito. Destas destaca-se a que fez à Sumatra para documentar a destruição do habitat natural dos orangotangos para exploração de óleo de palma.
No mundo da escalada o perito é Corey Rich, mas para chegar ao ponto mais alto tem-se sempre de começar por baixo. Corey entrou para este mundo como estudante, através de um jornal. Durante a faculdade foi tirando semestres sabáticos para viajar e fotografar para o jornal. O que valoriza mais na fotografia são os “momentos entretanto [enquanto se fotografa]” que, na vida, são “fugazes”. Fez parte de inúmeras aventuras perniciosas, incompatíveis com a vida familiar. Não tinha medo, pelo menos no início. Pensava que era tão perigoso “como o trajecto para o trabalho”, mas, depois de perder amigos em acidentes concluiu que “não conhecia ninguém que tivesse morrido a ir para o trabalho”. Por entre testemunhos sérios e solenes, a sessão de Corey trouxe alguma comédia ao fim de semana. O culminar de uma hora de conversa animada com o público foi quando Corey admitiu que a fotografia de que se orgulhava mais era a de um menino a “tirar um macaco do nariz”, inserida numa colectânea de semelhantes que foi recolhendo ao longo dos anos. No fim, Leila, a filha pela qual abdicou das viagens constantes e passou a fazer filmes – como o filme caseiro “Home” – subiu a palco para um abraço.
Para Daniel Berehulak foi difícil recapitular o seu percurso sem se emocionar a falar da irmã, que perdeu para a leucemia demasiado cedo. Descobriu a fotografia aos 24 anos, mas, sem saber o que o motivava, ficou-se pelo trabalho nas vendas. A irmã, pouco mais velha, sempre o incentivou a encontrar o seu “propósito de vida” e “aproveitar o momento”. Apenas depois desta falecer, e de se aperceber da fragilidade da condição humana, decidiu despedir-se das vendas e “não perder mais tempo”. Desde então já viajou pelo mundo inteiro e testemunhou grandes acontecimentos. “Senti mesmo que estava a ver a História a escrever-se à minha frente”, confessou sobre a vida como fotojornalista.
O desastre nuclear de Chernobyl, o pós-tsunami do Japão, as guerras do Afeganistão e Iraque, o julgamento de Saddam Hussein, as cheias no Paquistão, e a escravatura infantil na Índia – para onde foi morar a certa altura – são alguns dos momentos carimbados no seu passaporte e captados na sua câmara. Apercebeu-se de que “não sabia quem eram as pessoas que fotografava” e chegou mesmo a regressar ao Paquistão para as encontrar e ouvir a sua história. Esta necessidade de dar voz às fotografias traduziu-se, também, nos projectos sobre a Ébola em 2015 – que lhe valeu um Pulitzer – e sobre a war on drugs nas Filipinas. Para o fotojornalista, “através das nossas imagens e das nossas palavras temos o privilégio de convidar as pessoas de todo o mundo a entrarem na vida de outros”. Também Berehulak recebeu uma ovação de pé quando frisou – “a verdade é um luxo a que muita gente não se pode dar” – reassegurando a sua “responsabilidade” como fotógrafo e, principalmente, como jornalista.
Já Krystle Wright começou no desporto, como fotógrafa de surf para revistas. Apercebeu-se logo que eram a adrenalina e o perigo das aventuras e dos desportos radicais que a atraíam mais. É adepta de “fazer pausas nas viagens, para sonhar” e encontrar novos temas e aventuras, mas nem sempre foi assim. A vida errante começou a pesar com tantos anos de exploração. No início de carreira “nunca dizia que não a uma viagem”, mas foi uma aprendizagem crucial para continuar a ser saudável e poder fazer este trabalho. A instabilidade financeira que viveu em tempos foi um percalço que não escondeu do público, mas, agora, é capaz de recusar trabalhos e só se envolver nos projectos pessoais que quer mesmo realizar. O novo desafio de Krystle é ser realizadora de filmes: atualmente persegue e grava tempestades, como fez em “Chasing Monsters“.
De Mulher para Mulher
Desenganem-se os que pensam que um congresso de fotografia é meramente sobre imagens e os seus autores. O grande foco destes painéis está no processo em si, nas histórias por detrás de um storyteller visual. Assim, o feminismo, e as vantagens e desvantagens de ser uma mulher no mundo da fotografia, não ficaram fora da discussão.
Num debate entre mulheres, e moderado por uma – Claire McNulty, embaixadora europeia da National Geographic – foi explorada a perspectiva feminina sobre um negócio dominado por homens. Ser fotógrafa de viagem, de conflitos, de aventura ou apenas fotojornalista traz algumas exigências com as quais a vida familiar não compactua. Das presentes, apenas Mandy, Veronique e Claire eram mães, mas, para a maioria, o desafio é manter relações com as viagens constantes, salientaram Krystle e Danielle.
O assédio sexual e a vulnerabilidade feminina noutros países foram também dois aspectos contemplados. Contudo, para Danielle, ser mulher pode mostrar-se uma grande vantagem, pois não são vistas tão facilmente como ameaças e, segundo Veronique, estar tapada por uma burka traz vários benefícios. Nem sempre isto se provou ser verdade: a própria Danielle admitiu já ter sido raptada numa expedição.
No final do debate, quando questionada sobre a ausência de homens, a moderadora, Claire, confessou que já se tinha deparado com a incongruência e admitiu que teria sido importante ouvir o que eles teriam a dizer sobre o papel da mulher na fotografia.
Nos pequenos espaços entre palestras, debates e workshops, uns correram para a fila da casa de banho, outros foram comer alguma coisa, mas houve quem se perdesse a contemplar, ainda, os trabalhos expostos dos oradores desta edição.
Para os de espírito aventureiro, o evento contou, também, com as sessões do The Wanderlust Lounge – onde decorreram conversas informais com viajantes contadores de histórias. O convívio não terminou quando o sol se pôs: mudou apenas para o bar para as Late Night Sessions entre oradores e participantes.
Mal começou esta edição, já se anunciava a próxima. Bernardo Conde prometeu a vinda de Annie Griffiths, Nichole Bobecki, Benjamin Hardman, Jon Lowenstein, Leonel Castro, Taylor Rees, David Chancellor, Ben Page, Renan Ozturk, e o casal Dereck e Beverly Joubert. Quanto aos Exodus Talents, para o ano não serão quatro, mas sim seis. Ricardo Nascimento, Luís Ferreira, João Maia, Berta Couto, Ricardo Lourenço e Madalena Boto serão os protagonistas nacionais em destaque no Exodus 2020.
O fim de semana chegou ao fim, mas a mensagem principal não se ficou pelo auditório: ressoou em cada um dos participantes, que a levarão consigo na viagem que é a fotografia. “Encontrem o vosso propósito de vida e façam a revolução acontecer”, assim ditou Bernardo Conde. A próxima edição irá decorrer a 28 e 29 de novembro de 2020, no Centro de Congressos de Aveiro.