Crónica
MURO DE BERLINDES
Os fascistas têm razão. O mundo precisa de muros. As pessoas são tão bestas que é melhor ficarem cada uma no seu galho. Ou isso são os macacos?
Na miudagem os (R)isonhos, os (D)espachados e os (A)meaçadores são amigos uns dos outros e brincam até com os (R)ufias, os (F)rontais e os (A)tenciosos. A perfeita comunhão das duas Alemanhas. Mas quando chega a idade de ser gente, nota-se que todos deixaram a decência pendurada nos cabides do infantário. E nunca foram, sequer, aos Perdidos e Achados perguntar por ela.
Buzina-se no trânsito, mesmo quando não se tem pressa. Ignora-se a funcionária do café, mesmo quando o dia nos corre bem. Olha-se para o telemóvel, mesmo quando uma avó vai carregada de sacos e netos a subir o raio das escadas. Somos umas bestas. Deixamo-nos estar só mais cinco (ou vinte) minutos enquanto a mulher faz o jantar sozinha na cozinha. Publicamos no livro das caras uma fotografia do prato, e com a pressão de escrever uma legenda saborosa, nem olhamos para a cara que está à frente. Somos umas bestas. Transformamo-nos à custa da bola, zangamo-nos e destruímos por causa da cor das camisolas. E, pior, normaliza-se a situação de haver um quase AVC na mesa de domingo só para desprovar um fora de jogo. Mas quando algum pupilo atrevido tenta discutir a legalização da prostituição ou as tentadoras alternativas ao capitalismo com aquele tio de bigode que se senta à cabeceira, há sempre um olhar que queima e encerra o assunto logo ali.
Na miudagem, eramos bestiais. Falávamos e fazíamos tudo e, fosse com palavras, desenhos ou legos, lá nos resolvíamos. Agora, somos umas bestas. Arranjamos temas tabu e vivemos à volta do nosso umbigo mal lavado. Deixamos de saber brincar, deixamos de querer brincar e deixamos de ter tempo para brincar. E isso é problemático porque atira pelo cano abaixo a arte de saber socializar e saber estar. Sim, porque ninguém brinca sozinho. Mentirosos, não neguem os amigos imaginários.
Hoje, cada um na sua vida, preocupado com o seu tempo, o seu corpo, o seu estatuto e a sua panóplia de posses incrivelmente úteis e caras, estamos encurralados na sociedade do eu. Uma sociedade infantil que, no auge da birra por não receber a Batalha Naval no Natal, decidiu construir um tabuleiro vanguardista em HD.
Somos umas bestas, tudo porque não brincamos. Somos tão bestas que merecíamos ser encafuados – queimados é excessivo. Mas estamos com sorte, porque quem pensa bem não consegue construir muros. E não é por falta de força. Ou de altura. É porque brincam com berlindes. Que são redondos, e não se podem empilhar.