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Política

DOSSIÊ ‘PROTESTOS GLOBAIS’: ARGÉLIA JÁ TEM A SUA ‘PRIMAVERA ÁRABE’

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Argelinos seguem em protesto nas ruas desde fevererio de 2019 - Agência Anadolu/ Farouk Batiche

Argelinos seguem em protesto nas ruas desde fevererio de 2019. Foto: Farouk Batiche/ Agência Anadolu

Este artigo é o terceiro de uma série de quatro que o JUP dedica aos protestos populares que saíram à rua, nos últimos meses, em diversas regiões do mundo. 


Desde fevereiro de 2019 que os argelinos se manifestam nas ruas dos maiores centros urbanos do país, após o presidente Abdelaziz Bouteflika, no poder desde 1999, ter anunciado formalmente a sua candidatura a um quinto mandato.

Para além da resignação, a qual os manifestantes conseguiram em março, os protestos pedem ainda uma reformulação da elite política, a qual gere o país com base em interesses governamentais, servindo de entrave ao processo democrático.

Bouteflika, o presidente fantasma

Bouteflika foi um dos líderes da Guerra de Independência Argelina, revolução que levou à libertação da Argélia do domínio colonial francês. Após o término do confronto, foi nomeado Ministro do Desporto e Turismo e, posteriormente, Ministro das Relações Externas. Em 1999 ascendeu a Presidente da Argélia, conduzindo ao fim da Guerra Civil instaurada desde 1991.

Em parte devido a interesses petrolíferos, especialmente da França, o governo de Bouteflika passou praticamente impune à Primavera Árabe, um conjunto de protestos que ocorreram no Médio Oriente e Norte de África entre o final de 2010 e meados de 2012, nos quais os manifestantes se revoltaram contra a falta de democratização dos governos e a grave crise económica da região.

Neste período, Bouteflika fez apenas algumas mudanças na lei, concedendo, por exemplo, uma maior participação das mulheres na vida pública. Mesmo assim, a sua popularidade diminuiu consideravelmente.

Em 2005, Bouteflika sofreu uma hemorragia interna devido a uma úlcera no estômago. Desde então, idoso e doente, a população tem-se questionando sobre a sua aptidão para governar o país. Um acidente vascular cerebral em 2013 nutriu ainda mais desconfiança nos populares. As suas raras aparições públicas serviram como alimento para muitos boatos sobre a sua morte.

Em fevereiro de 2019, Bouteflika anunciou candidatar-se a um novo mandato presidencial, o seu quinto no governo. Uma revisão constitucional em 2016 limitou a dois o número de mandatos presidenciais. No entanto, como a lei não é retroativa, a declaração de candidatura de Bouteflika foi aceite.

Abdelaziz Bouteflika. Foto: Ramzi Boudina/ Reuters.

Abdelaziz Bouteflika, Presidente da Argélia entre 1999 e 2019. Foto: Ramzi Boudina/ Reuters.

Bouteflika forçado a demitir-se

Os protestantes, conhecidos como Movimento “Hirak”, pediram, numa primeira fase, o resignar imediato de Bouteflika.  A 11 de março de 2019, após um comunicado público de Ahmed Gaïd Salah, chefe do exército da Argélia, pedindo a demissão do presidente, Bouteflika anunciou oficialmente a resignação do cargo, numa mensagem endereçada ao país, e que não prosseguiria com a sua candidatura a um quinto mandato.

Foi também neste comunicado que o ex-presidente divulgou o adiamento das eleições programadas para 18 de abril, as quais se viriam a realizar apenas a 12 de dezembro do mesmo ano.

Abdelkader Bensalah, presidente do Conselho da Nação, a câmara alta do Parlamento da Argélia, entre 2002 e 2019, ocupou o lugar de chefe de Estado até que novas eleições fossem realizadas. No entanto, o povo sabia que estava a ser governado por militares, principalmente por Gaïd Salah, chefe do exército, o qual ajudara a derrubar Bouteflika.

Eleições asseguram a continuidade do regime

Cinco candidatos disputaram as eleições presidenciais. Abdelmadjid Tebboune, antigo primeiro-ministro, ganhou com maioria absoluta, numa votação marcada por abstenção recorde. Abdelaziz Djerad foi nomeado primeiro-ministro.

Em época de pré-eleições, Aissa Moussaoui, um estudante que participou nos protestos, referiu à Vice News que os manifestantes não aceitariam os cinco candidatos, pois eles pertenciam ao regime de Bouteflika e eram politicamente incompetentes. Para além dos manifestantes, também a Força da Alternativa Democrática (FDA), aliança criada por vários partidos argelinos, pediu o boicote das eleições.

Todos os cinco candidatos à presidência tinham antecendentes políticos, desde cargos como primeiro-ministro, como é o caso de Tebboune, a outras variadas posições governamentais. No debate televisivo, todos prometeram algum tipo de mudança, de forma a cativar os protestantes argelinos para o voto.

Processo Judicial atinge ex-governantes

Numa ânsia de restabelecer a sua reputação, o governo iniciou um processo judicial contra antigos governantes e representantes da indústria automóvel. Esta é a primeira vez, desde a independência em 1962, que o sistema judicial argelino julga antigos chefes de governo.

No banco dos acusados estão, entre outros, Ahmed Ouyahia, 4 vezes chefe do governo entre 1995 e 2019, 3 destas sob a presidência de Bouteflika, e Abdelmalek Sellal, chefe de governo de 2014 a 2017.

O processo dá-se na sequência de vários inquéritos sobre casos de corrupção após a demissão de Bouteflika e a constante pressão do Movimento “Hirak”. Mohamed Madjoud, porta-voz dos advogados de defesa, emitiu um comunicado ao juiz que preside o caso dizendo que a defesa boicotava o julgamento, pois este estava “politizado” e partia de um “ajuste de contas”.

“O vosso sistema prejudica gravemente a nossa saúde”. Foto: Direitos Reservados.

Cartazes exibidos durante uma manifestação: “O vosso sistema prejudica gravemente a nossa saúde”. Foto: Direitos Reservados.

Manifestações pacíficas

No entanto, e contrariamente à maioria das manifestações a nível global, como são exemplo as do Chile e Hong Kong, os protestos na Argélia têm sido pacíficos. Apesar das centenas de presos, muitos sob acusações tão vagas como a de prejudicar a união nacional ou de debilitar a imagem do exército, ainda não foi contabilizada nenhuma morte no decorrer das manifestações.

Os protestantes, de várias faixas etárias, têm usado diversas formas de protesto não-violentas, nas quais o humor é a base, como é o caso de alterações em slogans e logótipos de produtos e empresas mundialmente famosas.

Num dos cartazes pode-se ver a imagem de um pacote de cigarros Marlboro, o qual foi modificado para Mal barré, “em mau estado”. O slogan que o calça é Votre systéme nuit gravemente à notre santé”: “O vosso sistema prejudica gravemente a nossa saúde”. Outro cartaz caricato é encabeçado pelo sinal de Wi-fi, ao que se segue a inscrição “Pessoas conectadas, governo desconectado”.

A passividade dos manifestantes parece demonstrar receio que um excesso de violência possa desembocar num grande número de mortes. Ao Vice, um protestante confessa que o povo prefere marchas pacíficas, pois se estas ficassem violentas rapidamente o país se tornaria numa nova Síria.

A morte de Ahmed Salah: Argélia de novo nas bocas do mundo

No final do ano passado, o clima político-social argelino voltou às bocas do mundo, após Ahmed Salah, líder de facto da Argélia de março a dezembro de 2019, ter morrido subitamente, no dia 23 de dezembro, aos 79 anos, vítima de um ataque cardíaco.

Após a morte do general, Tebboune nomeou Saïd Chengriha, oficial sénior do Exercito da Argélia, como novo Chefe do Exército. Este episódio inesperado vem trazer novos desafios ao país, em protesto desde fevereiro de 2019.

Texto da autoria de Marco Matos. Revisto por Miguel Marques Ribeiro.

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