Cultura
TURISMO: NEM TUDO É UMA QUESTÃO DE COMPRA E VENDA
Depois de Pátria, a estrutura A Turma apresenta “Turismo” – uma experiência simultaneamente teatral e cinematográfica assente na especulação imobiliária e nos despejos urbanos.
A vontade de mergulhar neste assunto – explica o autor e encenador ao Jornal Universitário do Porto – surge de uma “pesquisa do real”. De tempos em tempos, a história repete-se e, em alguns casos, vira tema mediático. O drama daqueles que ficam sem casa do dia para a noite é real. Assustadoramente real. No entanto, Tiago Correia propõe uma visão dos dois lados da moeda.
“Porque é que as pessoas chegam ao ponto de despejar alguém sem escrúpulos? É porque não têm escrúpulos ou porque precisam de sobreviver?”
Nesta cidade (“que representa todas, sem ser nenhuma”) cruzam-se as vidas (ou as sobrevivências) de seis personagens: uma jovem, aspirante a atriz, cujo ganha-pão é o turismo; um polícia, filho e homem exausto que tenta manter a ordem da cidade e da sua vida caótica; uma idosa, mãe do polícia, a quem a demência sugou a vida; um turista francês, semelhante a qualquer outro, por não perceber outra língua e ter uma câmara fotográfica; uma sem-abrigo frustrada, que culpa o turismo e a gentrificação pelo rumo da sua vida, e um empresário estrangeiro, para quem o dinheiro tudo vale.
“Todas elas são solitárias, estão sozinhas no mundo, sozinhas entre milhares”, sublinha Tiago. Mas, durante estes três derradeiros dias e noites, nos quais se assiste a uma luta pela sobrevivência e pela dignidade, todas elas dependem umas das outras, se espelham umas às outras e se fazem recordar quem são.
“Turismo” é doloroso. Doloroso como tirar a última fotografia do rolo e ficar miseravelmente desfocada. Doloroso como rebentar um balão junto ao ouvido.
Do alto de um realismo fiel, a peça questiona o que constrói a identidade e o que deve guardar a memória quando o passado não é bom para ser lembrado. Despe gerações, contorna a justiça, abana o sistema e mostra os resquícios de amor que não se queimam com as chamas.
No entanto, “há uma tentativa de não julgar, porque todas as personagens têm as suas razões para agir como agem”, ressalva o encenador. Ainda assim, entre os silêncios barulhentos e os gritos mudos desta cidade anónima, pede-se, sem gentiliza nenhuma, que o capitalismo selvagem, que tudo engole, vá fazer turismo para outro lado.
A Turma, sob o olhar perspicaz de Tiago Correia, fez-nos viajar durante 2h30. Mas fomos muito mais longe do que Porto-Lisboa. Com panos nascem apartamentos e ruas, com olhares e gestos nascem danças e diálogos. Exímio no minimalismo, “Turismo” ampliou pormenores, fundiu línguas e aproximou artes.
Acontece que – tal como uma boa experiência teatral deve ser – dói. “Também tu és apenas uma cidade abandonada” – atira a sem-abrigo. Pois, agora eu sei. Por isso é que doeu tanto. Porque nós não somos aquelas personagens, nós somos como o espetáculo, que é tal qual como a cidade: frágil, que rebenta tão facilmente como um balão.