Cultura
DESCONCERTO: A ARTE DE IMPROVISAR
“Pode correr mal? Pode! É o mais certo! E ainda assim vocês esgotam Coliseus por coisa nenhuma.” É em tom de brincadeira, que César Mourão pergunta ao público qual o motivo que os leva a comprar bilhete para um espetáculo que não é programado.
No entanto, nem a possibilidade de correr mal desviou as atenções de um público que se preparava para uma noite onde não faltaram sorrisos, guitarras e surpresas.
A palavra “Desconcerto” dá nome ao espetáculo – “não por ser desconcertante, mas por ser descabido.”
Os músicos portugueses presentearam o Porto com mais uma noite de “Coliseus” e destacam-se por fugirem ao conceito tradicional de concerto. Ali, em palco, não há truques, nem segredos. O espetáculo é uma ode ao improviso e à criatividade dos artistas, e vale pela sua autenticidade e capacidade de resultar no inesperado.
Dependentes da informação que os voluntários e a audiência lhes oferecem, os quatro intérpretes são desafiados a criar, no momento, canções a partir de palavras, temas e pessoas.
Ao contrário de Luísa Sobral, Miguel Araújo e António Zambujo, César Mourão está habituado a improvisos e a criar diálogos orgânicos com o público. Por isso, o humorista, ator e músico assume-se como o apresentador que guia o Coliseu ao longo da noite.
Desde 2018, quando estrearam o espetáculo, que os artistas improvisam e expõem o seu processo criativo por salas de espetáculo e Coliseus do país. A ideia surgiu quando César, Miguel e António passavam férias no Algarve e, “conversa puxa conversa”, o improviso surgiu. Convidaram Luísa Sobral e, juntos, uniram-se com um principal objetivo: a diversão, dos próprios artistas e de quem assiste.
Não há dois espetáculos iguais.
O quarteto reinventa-se minuto após minuto e o público é surpreendido do início ao fim. Em pouco mais de uma hora e meia, tem-se o tem o privilégio de assistir, ao vivo, ao método de criação e escrita criativa de textos e canções, com muito talento e humor à mistura.
Iara foi a primeira “vítima” da noite. César Mourão pede ao público feminino uma mala para investigar, “tirar tudo” e “mexer à vontade”. Enquanto retira os objetos que encontra na carteira, Luísa Sobral e Miguel escrevem uma canção sobre “A mala de Iara”. Quando terminam, a impressora revela a letra. António Zambujo, na guitarra, passa, rapidamente, os olhos pelas folhas e começa, sem hesitações, a interpretar a música, improvisada.
Um casal, na plateia, deu um beijo que não passou despercebido aos olhos atentos do apresentador. César convida-os a palco para o seguinte número de improviso. Desta vez, o desafio consiste em escrever uma música sobre o par. Diogo e Ângela – os namorados – revelam o que menos gostam um no outro, e Luísa Sobral e Miguel Araújo agarram em cada detalhe para escrever a letra.
Quando pronta, a canção é recebida por António Zambujo, que interpreta Diogo e por César que se faz passar por Ângela, “por ter a voz mais agudinha”. O público não conteve os risos e o espanto ao som da desgarrada sobre o casal.
Perante a inquietação de todos os presentes na sala, a nova brincadeira é lançada. Desta vez, César Mourão chama um artista portuense e um dos “maiores nomes da música portuguesa”. Pedro Abrunhosa foi a surpresa da noite. O “Desconcerto” conta com um convidado por sessão, e Luísa Sobral relembra que nenhum outro público terá a oportunidade de ter a presença de Pedro Abrunhosa.
Luísa, Miguel e Abrunhosa são desafiados a escrever uma canção sobre uma pessoa do público, escolhida aleatoriamente, sem qualquer informação que não seja a visível. Enquanto o voluntário aguarda, numa moldura, que os três escrevam sobre si, Zambujo e César entretêm o público. Os dois artistas tentam fazer uma canção a partir de um papel de um membro da plateia. Escolhido o estilo: Bossa Nova, a magia do improviso volta a acontecer.
Entretanto, as canções sobre a pessoa na moldura estão prontas. Luísa é a primeira, e tenta adivinhar a identidade do voluntário. Segue-se Miguel Araújo, com uma interpretação diferente e, por último, Pedro Abrunhosa.
O convidado dirige-se ao piano e agarra a letra a seu estilo. Faz referência a temas atuais – como o coronavírus e o excesso de turismo na cidade do Porto – e os presentes não conseguem evitar não rir. Cumprido o desafio, a identidade da pessoa é finalmente revelada e em (quase) nada corresponde às suposições musicais dos intérpretes.
O momento seguinte exige conhecimentos musicais e João Salcedo – ou Salsa, como é conhecido enquanto membro da banda Os Azeitonas – foi o eleito voluntário. Com a ajuda de Rosinha, uma convidada que acompanha o “Desconcerto”, os quatro artistas cantaram sob as ordens de Salsa. Iluminados por lanternas que davam sinal a cada um sinal para avançar, o desafio consistia em improvisar uma canção, com uma expressão do intérprete anterior.
No momento seguinte, cada um recebe uma palavra para, com ela ou a partir dela, criar uma canção. César foi o primeiro, inspirado na palavra “aniversário”. Sempre atento à plateia, nunca deixou cair o seu diálogo constante e hilariante. Seguiu-se Luísa Sobral com a palavra “sorriso”, Zambujo com “castelo” e Miguel Araújo com “bicicleta”. Os resultados desiguais contribuíram para a riqueza musical e criativa da noite.
Por fim, a última canção. Música essa cuja melodia se repete em todos os espetáculos. A letra foi destinada à Ana Rita ao Francisco, dois voluntários “solteiros” que subiram a palco para que Luísa Sobral e o Miguel Araújo escrevessem uma letra inspirada numa possível relação. “Duas pessoas que vieram solteiras saíram daqui casadas”, brinca César Mourão.
A boa disposição reinou durante todo o espetáculo e a criatividade deu asas a viajar intensamente pelo mundo da música e do humor.
Entre vénias, palmas e gargalhadas, os artistas despediram-se de mais um “Desconcerto”. César Mourão, Luísa Sobral, Miguel Araújo e António Zambujo vão continuar a improvisar canções, a arrancar sorrisos e a surpreender audiências, mas o talento destes artistas e amigos não pode ser improvisado.