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Crítica

(In) Traduções

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Chegou recentemente às livrarias – em fevereiro deste ano – aquela que é uma das poucas traduções para a língua portuguesa de textos de Rumi, poeta persa do século XIII. O Pequeno Livro da Vida – o jardim da alma, do coração e do espírito encontra-se dividido em três partes como o subtítulo indica, e reúne textos vários desde os de Divan-e Shams, Masnavi, Rubayiat e de Divan de Shafii Kadkani.

Dirijo, primeiramente, o meu olhar para a estrutura – espelhada na edição portuguesa – do texto ‘original’ em inglês, traduzido do persa por Maryam Mafi e Azima Melita Kolin. Começando pelo prefácio. Embora haja uma pequena introdução à poesia de Rumi, poucas são as explicações sobre os aspetos formais e de conteúdo que regram os versos do poeta persa, pelo que, mesmo sendo destinada a um público que não é especialista em literatura oriental, as descrições não chegam para contextualizar o autor, o seu misticismo/sufismo e respetivo impacto no Oriente e no Ocidente. Faz-se referência à simplicidade linguística do autor, à leveza dos seus versos, mas não se explica o ritmo Hafez que rege os textos em versos de 16 sílabas com cesura interna. Este ritmo, fruto de um labor calculado e rigoroso, cria a simplicidade referida e é uma das características específicas da poesia de Rumi, devendo, portanto, ser devidamente anotada.

A opção das tradutoras em privilegiar o conteúdo em detrimento da forma desequilibra os poemas, o que já se faz notar na edição em inglês. A explicação para tal no prefácio deixa muito a desejar, dando-se a entender que as tradutoras desistiram completamente do texto. Às particularidades sonoras do texto de Rumi – e à falta delas na tradução – responde-se com questões abertas. A resposta de Mafi e Kolin não é minimamente fundamentada e carece de método formal rigoroso. Não houve esforço em tentar aprimorar o ritmo da língua inglesa para que esta espelhasse um pouco – nunca o chega a fazer completamente, é certo – da sonoridade do texto original.

Em suma, Mafi e Kolin transcreveram o significado dos poemas, conservando – e bem a sua ambiguidade –, mas descuraram o significante, retirando qualquer possibilidade de poesia.

No prefácio lê-se ainda que ‘alguns tradutores são mais bem-sucedidos do que outros porque inserem vastas notas informativas na sua poesia’ (tradução minha); as notas desta edição praticamente que não existem. A dificuldade em ‘jogar com as ambiguidades semânticas’ ficaria facilmente resolvida se as houvesse. A pequena introdução também deveria conter notas de rodapé contextualizando preliminarmente o sufismo, os dervixes, a sua religião, a poesia persa, enfim; bem como a escolha, a organização e a fonte dos poemas.

Permito-me um reparo breve: um dos poemas finais (Divan-e Shams 2814: Bendito o momento) parece estar incompleto, já que lhe vi uma tradução em francês e um ensaio inédito de tradução para o português, poemas estes mais extensos e que fazem logo notar um maior rigor linguístico e melhores trabalhos poético e rítmico. A justificação do arquivo e da escolha dos poemas parece-me, agora, imperativa.

Quando o prefácio explica brevemente o misticismo de Rumi – nunca o nomeando diretamente –, Narguess Fazard faz crer que este transparece fruto da tradução, o que é inverosímil, falacioso e pretensioso. A Rumi o que é de Rumi.

Em seguida, descrevo a tradução portuguesa de Manuel Clemente que conserva as idiossincrasias do texto antecedente. A sua tradução é, também, praticamente literal, não tendo poesis. Os poemas que permitem melhores efeitos no leitor são aqueles cujo conteúdo nos é trazido pelas alegorias; por figuras de estilo que funcionam com base nos jogos de dubiedade semântica.

Acrescento a estas particularidades o pormenor engraçado de que Clemente nem a edição inglesa respeita: cortando parágrafos, partindo versos, falhando cesuras, colocando vírgulas que obrigam a pausa onde a pausa já existe em final de verso – tornando-as completamente redundantes.

Tendo lido uma melhor tradução de Rumi para o francês pergunto, então, o porquê de se trabalhar a edição de textos em inglês. Porquê este livro em específico? Porque não traduzir do francês? Ou mesmo do original persa?

O interesse pela poesia de Rumi – e pela paz que os seus textos transmitem – tem vindo a crescer em Portugal desde o início do milénio. As edições esgotadas aparentam revelar uma propensão para a descoberta da poesia persa em pleno ocidente. E se adotarmos uma postura acrítica sobre este fenómeno, interpretamo-lo como sendo consequência de um aumento da procura do saber e da cultura orientais. Mas tal não se verifica.

A partilha de citações nas redes sociais ajuda na divulgação e na permanência do fluxo de leitura, mas não transmite a aura autoral e artística do poeta. Assim, lê-se à pressa sob o jugo do mundo virtual e instantâneo. Os textos, traduzidos em inglês, circulam livremente sem qualquer guia de interpretação e/ou descrições contextuais que ajudem a situar a poesia persa e o misticismo nela embutido. Numa sociedade da rapidez, do cita e esquece, celebra-se Rumi num ritual quase bárbaro onde reina a ignorância. E os livros, publicitados em massa, esgotam.

Atrevo-me a dizer que estamos, infelizmente, a ocidentalizar Rumi, tornando-o no supremo guia de auto-ajuda, dos amores proibidos e que carecem do divino que ele tanto apregoa.

É necessário, então, que se formem críticos de Rumi em Portugal – não necessariamente portugueses, entenda-se –, para que seja possível traduzi-lo para português com um outro rigor, partindo-se do persa. Traduções baseadas nas inglesas não chegam e trabalhar Rumi sem se ter uma perspetiva do que é a sua poesis é privar o leitor da sua poesia – passe-se a quase redundância.

Por fim, não quero com isto dizer que não se deva editar Rumi em Portugal, muito antes pelo contrário. A possibilidade de o ler – embora em textos lacunares – é o suficiente para que nasçam cultores da sua língua e da sua poesia e, quem sabe, talvez se formem especialistas de poesia persa em Portugal precisamente por causa destas edições.

[Não tendo conhecimentos da língua persa, quaisquer erros aqui transcritos são assumidos inteiramente pela autora desta recensão]

Clara Maria Silva.

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