Sociedade
46 anos depois: a liberdade de um povo “dentro de ti, ó cidade”
Com o surgimento da crise pandémica que está a afetar Portugal e o resto do mundo, a sociedade vê-se privada de um dos seus mais importantes direitos: o direito à liberdade. A restrição de um direito que Portugal penou para ter vê-se agora como uma das soluções para o controlo da propagação do vírus.
Da repressão ao dia da mudança
Agostinho Guedes, professor da Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, explica ao JUP, em poucas palavras, a importância da Revolução dos Cravos para a sociedade atual. Começa por fazer notar que cada um de nós só consegue realizar-se como pessoa plenamente tomando decisões, e que, antes do 25 de abril, este processo individual de crescimento pessoal a partir das nossas escolhas não acontecia: “era ficção científica porque ninguém tinha essa liberdade”, admite o professor.
Portugal antes do 25 de abril era um país pobre a nível económico e educacional, governado por um chefe de governo que “tinha horror à liberdade e à mudança e que achava que tudo o que era estrangeiro era uma má influência”, recorda Agostinho Guedes.
O Estado Novo caraterizava-se por um regime autoritário e nacionalista. Com a sua instituição foram extintos os diversos partidos e criada a União Nacional, a única organização a quem era permitida a atividade política. “Diz-se ‘Estado Novo’ mas já era um estado velho, tinha 45 anos”, diz ao JUP Jorge Miranda, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). No seu ponto de vista, “era um regime que estava completamente isolado na Europa, só Espanha teve um regime parecido”.
“O pensamento político era uma coisa inexistente”, diz Agostinho Guedes, falando da condicionante à liberdade de escolha durante esse meio século de repressão: “nós hoje, quando falamos em liberdade para tomar decisões, como a liberdade de escolha de profissão ou de residência, isto tudo implica uma escolha política fundamental que é uma escolha por um sistema social onde as pessoas possam de facto tomar essas decisões”, considera o professor.
“No regime ditatorial [a escolha] não existia. As pessoas estavam plenamente condicionadas pela sua origem social, pela sua classe económica, pelo local onde nasceram e onde viviam, pela escola que frequentavam”, explica Agostinho Guedes
Salazar criou métodos para controlar os opositores do Estado Novo. Um dos órgãos de censura era a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) que tinha como função reprimir aqueles que ousassem manifestar-se contra o regime político.
“Havia a polícia política, a PIDE, que intervinha, que prendia, às vezes torturava. Havia as guerras em África; conta a história que levaram à morte de milhares de portugueses e de africanos. Havia a censura à imprensa, não havia partidos, havia um condicionamento enorme de toda a gente, económico e social. E, portanto, a situação no país era extremamente difícil antes do 25 de Abril”, explica Jorge Miranda.
Na madrugada de 25 de abril de 1974, os militares saíram dos seus quartéis e tomaram posições estratégicas no país. O primeiro sinal para dar início à Revolução dos Cravos foi dado nos Emissores Associados de Lisboa, às 22h55 da noite anterior, ao som de “E Depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho. O segundo sinal foi dado na Rádio Renascença com a que viria ser eternizada “Grândola Vila Morena”, de Zeca Afonso, às 00h20 de dia 25.
No decorrer do dia, a população juntou-se aos militares e rapidamente o golpe de Estado transformou-se numa revolução. através da distribuição de cravos por uma vendedora de flores. Os militares colocaram as flores que ganhariam nesse dia um símbolo inequívoco no cabo da espingarda e os populares ao peito. No final da tarde de 25 de abril, Marcelo Caetano, sucessor de Salazar, rendeu-se e entregou o poder ao general António de Spínola.
O 25 de abril foi “um dos dias de maior alegria da minha vida”, recorda o professor Jorge Miranda
Após a revolução foram extintos órgãos autoritários como a PIDE e chegou ao fim a guerra colonial. Aos poucos as províncias ultramarinas tornar-se-iam independentes. Um ano depois, a 25 de abril de 1975, os portugueses votaram pela primeira vez em liberdade e a Assembleia Constituinte aprovou a nova Constituição da República Portuguesa de 1976, documento que se mantém até hoje.
Esta consagra uma nova organização do Estado português, com ideias democráticas e pluralistas onde os cidadãos passam a escolher os seus representantes através da eleição direta do Presidente da República e os deputados, e a eleição indireta do governo. “A maior parte dos direitos de liberdade e garantias da Constituição são consequências deste princípio fundamental de preservação da liberdade. Sem liberdade não há dignidade”, diz Agostinho Guedes.
Liberdade constrangida pelo estado de emergência atual
Agostinho Guedes afirma “que o 25 de abril nos deu o mais importante de tudo: a liberdade. Sem liberdade não há dignidade, não podemos ser aquilo que queremos ser, como querermos ser se não somos livres de tomar as nossas decisões. Tudo o que é limitação à nossa liberdade só pode ser feita se for estritamente necessária para preservar a paz social”.
Jorge Miranda acredita que o conceito de liberdade é sempre o mesmo. “Significa sempre autonomia da pessoa, respeito e dignidade da mesma, não intervenção de poder público na esfera íntima da pessoa, possibilidade de a pessoa exprimir a sua opinião, associar-se e reunir-se”, afirma.
Assume ainda que “liberdade” é um conceito já muito antigo e que não será alterado a longo prazo, mesmo em fase corrente de restrição: “está bem definida e bem recortada nas constituições, não acho que vá haver mudança no sentido de liberdade”, admite Jorge Miranda.
Com o atual estado de emergência em Portugal, estão restringidas algumas liberdades:
- Liberdade de deslocação: os cidadãos só podem sair de casa em razões justificadas, como a deslocação e desempenho de atividades profissionais, para assistência a terceiros, para obtenção de cuidados de saúde e para compra de bens essenciais.
- Propriedade e iniciativa económica privada: estabelecimentos comerciais que não de bem essenciais estão encerrados.
- Circulação internacional: as fronteiras estão fechadas, e só com um comprovativo ou motivo justificativo é que se podem deslocar para outro país.
- Direito de reunião e manifestação: estão impedidos convívios e ajuntamentos de pessoas de qualquer índole
- Direito ao culto: os cidadãos mantêm a liberdade de escolha de religião, mas neste momento o direito de poderem deslocar-se a uma igreja e assistirem a cerimónias está suspenso.
- Liberdade de aprender e de ensinar: creches, escolas e faculdades estão fechadas, o que implica a limitação de aprender e de ensinar. No entanto, há a possibilidade e as condições necessárias de se poder continuar a aprender e de ensinar à distância.
Jorge Miranda declara confiança no bom senso do Presidente da República no que concerne às medidas implementadas, sublinhando ainda um fator “extremamente positivo”: o bom entendimento entre Presidente e o governo. “Com certeza que são as medidas que mais consideram necessárias e adequadas”, diz ao JUP.
O professor da FDUL destaca o 64º. artigo da Constituição que diz que os cidadãos têm “o direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover”, incluindo também que o estado tem o dever de definir medidas de medicina preventiva. “Portanto, este confinamento é muito desagradável, muito aborrecido, tem consequências económicas destrutivas, mas não é só em Portugal”, conclui Jorge Miranda.
A polémica comemoração do 25 de Abril de 2020
Jorge Miranda considera que a comemoração do 25 de Abril deve realizar-se sempre, apesar de serem discutíveis os termos em que a celebração se realiza. Porém, apoia os termos previstos da comemoração deste ano determinados em Assembleia da República. “Se a AR funciona para debates com o Governo para aprovação de leis, não se compreende que não se faça uma cerimónia solene comemorativa do 25 de Abril”, acresce o professor.
O professor universitário afirma ainda que não compreende o facto de haver pessoas que aceitam que a Assembleia se reúna em várias ocasiões e não aceitam que se reúna em dia célebre e de “grandíssima importância” para o país.
“A comemoração do 25 de Abril é sempre simbólica porque já é uma data histórica, portanto é sempre um símbolo que se vai sempre celebrar”, afirma. Com isto, afirma ainda que as precauções deliberadas pelo Presidente da AR com o consentimento do Presidente da República são acertadas e conscientes.
Agostinho Guedes considera que, tendo em conta as condições presentes, a data deve ser celebrada, não desfazendo da sensatez e cuidado de forma a impedir novos contágios. No que diz respeito à cerimónia no parlamento, afirma que, caso sejam tomadas as medidas necessárias para prevenir, não nota desvantagens.
“Acho que as pessoas terão dificuldade em compreender porque é que, por exemplo, não podem ir aos funerais dos seus entes queridos, ou porque não podem casar e não podem convidar as pessoas, e ao mesmo tempo se podem fazer celebrações destas”, admite. Pode haver uma sensação de que os deputados criam normas para o comum dos Portugueses e depois não aplicam a eles próprios – “esse é o perigo”.
No entanto, o professor sublinha ainda que é impensável assumir que pessoas que defendem que o 25 de Abril deve ser celebrado de outra maneira sejam incorretamente descritas como pessoas contra o 25 de Abril. “Acho que para o 25 de abril deve ser celebrado podemos, por exemplo, ir para as varandas com os cravos e com as bandeiras”, acrescenta.
A liberdade após a crise pandémica
“O meu medo é que as pessoas, pelo facto de terem medo destas coisas, aceitem limitações à sua liberdade que de outra forma não aceitariam. Foi uma coisa que me perturbou um pouco no início”, afirma Agostinho Guedes.
O medo do contágio pode levar a uma aceitação desmedida de realidades outrora impensáveis. Agostinho Guedes considera que “é sempre mau tomar decisões com base no medo. É a pior coisa que se pode fazer”. O professor considera que a época anterior ao 25 de Abril, onde a existência era marcada pelo medo – medo de falar, medo de chamar à atenção das autoridades – já foi suficiente.
“Nós portugueses aprendemos a viver com medo durante 48 anos. E eu não gostava que esta geração aprendesse a viver com medo. Quem toma decisões com base no medo não é uma pessoa livre”, admite Agostinho Guedes
O entrevistado ressalta ainda o receio de que o Estado comece a “vender” às pessoas, um pouco na linha do que já tem vindo a acontecer, a ideia de que o Estado consegue resolver os problemas de todos, que consegue proteger as pessoas contra todos os males e que em troca disso exige limitações à liberdade das pessoas para além daquilo que é razoável.
“É assim que as ditaduras proliferam. As ditaduras assentam em dois pilares: por um lado o medo, e por outro lado o facto de fazerem as pessoas acreditar que estão a ser protegidas”, conclui Agostinho Guedes.