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Artigo de Opinião

A ineficácia da situação de calamidade pós-emergência

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Situações extremas exigem medidas extremas. Os tempos excecionais que vivemos provam exatamente isso. Estão a testar todas as valências do Estado social e este têm respondido de forma adequada. Foi declarado estado de emergência pela primeira vez na história constitucional democrática portuguesa. Hoje, portanto, vive-se a História dos manuais dos nossos filhos e netos.

A conjuntura atual poderá permitir o levantamento de algumas medidas de contingência decretadas pelo Governo e esse anúncio será feito a 30 de abril, certamente, após a audição e de um parecer alargado dos especialistas, bem como da DGS (Direção-Geral da Saúde), como de resto é já habitual. António Costa já anunciou que para o fim-de-semana prolongado de 1 a 3 de maio (em que, ao feriado do Dia do Trabalhador se junta o domingo de Dia da Mãe) serão aplicadas medidas de restrição da circulação entre municípios, semelhantes às aplicadas no fim-de-semana de Páscoa. A isto acresce um problema: a declaração de estado de emergência cessa às 23h59min do dia 2 de maio, confirmada a intenção de não renovar pelo PR (Presidente da República), pelo que, após esta data, de acordo com declarações do PM (Primeiro-Ministro), deverá ser declarada a situação de calamidade, prevista na LBPC (Lei de Bases da Proteção Civil); e então aqui sim, acrescem vários problemas, vejamos:

  1. A CRP (Constituição da República Portuguesa) vinca, no nº 1 do art. 19º, que os órgãos de soberania não podem suspender o exercício de DLG (direitos, liberdades e garantias), salvo em caso de estado de sítio ou estado de emergência;
    • O direito de deslocação está previsto no art. 44º da CRP no capítulo dedicado aos DLG pessoais, pelo que só pode ser suspenso com a declaração de estado de sítio ou estado de emergência;
    • De facto, a violação no disposto da declaração de estado de emergência, é considerado um crime de responsabilidade, nos termos do art. 7º da Lei do regime do estado de sítio e do estado de emergência;
    • Pela lógica, estando a CRP no topo da pirâmide normativa, não deverá nenhuma outra norma aplicar pressupostos contrários a esta.
  1. A LBPC, no entanto, fixa que a declaração de situação de calamidade poderá estabelecer, entre outros, limites à circulação ou permanência de pessoas;
    • Fixa até uma obrigação de respeito e cumprimento pelas ordens legítimas das autoridades, incorrendo-se num crime de desobediência;
    • Não se considera legítima uma ordem que restrinja os DLG pessoais, salvo as de estado de sítio ou estado de emergência;
    • A norma da LBPC que estabelece a possibilidade dos limites acima referidos parece, na opinião que apresento, tratar-se de uma norma inconstitucional material originária, porque viola, desde a sua vigência, o disposto na CRP.

O Governo nunca poderá, com fundamento na LBPC emitir decreto que restrinja, portanto, qualquer DLG pessoal. A declaração de situação de calamidade põe em causa, portanto, a eventual proibição de circulação entre municípios que o PM anunciou, bem como o condicionamento de circulação de grupos de risco, por exemplo, uma vez que só o estado de sítio e o estado de emergência têm esse poder. Afinal, se a LBPC conferisse essas competências restritivas de DLG, o Governo via-se dotado de competências que exigem um processo extensivo na declaração de estado de emergência, ou seja, era mais fácil em termos de procedimentos a declaração de situação de calamidade do que a de estado de emergência. Luísa Neto, na sua produção doutrinária, defende que a garantia dos DLG na CRP é uma expressão de desconfiança face ao Estado. Creio que a rigidez de procedimento para a declaração de estado de emergência é a prova disso mesmo.

Em termos práticos, em situação de calamidade, o Governo apenas poderá emitir recomendações e informações, mas nunca de carácter imperativo, como no estado de emergência, ou seja, seriam normas ineficazes, porque nunca poderiam produzir efeitos, nomeadamente ao nível de acusações por crimes de desobediência; nesse caso dependeria de decisões judiciais, de entre as quais uma eventual do TC (Tribunal Constitucional) face à norma que julgo inconstitucional. Esta posição foi, aliás, defendida por diversos constitucionalistas, como Jorge Miranda, Bacelar Gouveia e Reis Novais, mas com um apontamento do PM que afirmou que os juristas têm uma capacidade “enorme” de “inventar problemas” onde eles não existem, o que não foi a declaração mais feliz, sendo o próprio, jurista, pois deveria ter reconhecido que o seu trabalho é garantir, precisamente, a ordem jurídica estabelecida.

Na necessidade de conter a propagação da pandemia num fim-de-semana crítico, proibindo a circulação entre municípios, nos termos constitucionalmente legítimos, a solução seria a renovação do estado de emergência por um período mais curto. A situação de calamidade não serve esse efeito. A CRP e a Lei regime do estado de sítio e do estado de emergência só preveem a impossibilidade de a declaração ter uma duração superior a 15 dias, mas nunca referem uma duração mínima, o que dá a Marcelo Rebelo de Sousa margem de manobra para uma declaração que sirva pelo tempo estritamente necessário a proposta de proibição de circulação entre municípios no fim-de-semana prolongado de 1 a 3 de maio.

Tudo dependerá da perspetiva que o Governo adotar, isto é, poder-se-á assumir que a declaração de situação de calamidade e as recomendações daí recorrentes serão suficientes para que as pessoas continuem a cumprir as orientações da DGS, ou pode assumir-se que com o fim do estado de emergência haverá uma inobservância de alguns, se não muitos, dos pressupostos com este aplicados, cuja única forma de continuar a assegurar seria com uma terceira renovação.

Na minha perspetiva, havendo uma margem para tal, e tratando-se, como já supracitado, de um fim-de-semana prolongado crítico, deverá o Governo apresentar ao PR proposta de uma renovação do estado de emergência de duração mais reduzida, que deverá ser autorizada pela AR (Assembleia da República), para garantir duas coisas, essencialmente: a observância dos pressupostos constitucionais no que concerne à única maneira de restringir DLG e, ainda mais importante, garantir que haja espaço para a responsabilização das pessoas que, violando o dever de confinamento e a proibição de circulação entre municípios, ponham em causa a saúde pública.