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Crónica

Vamos falar de clichês

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Tudo no clichê me irrita. Começa por não se poder distinguir um clichê de uma expressão comum, de um não-clichê. Sobre esta matéria, o que eu posso com certeza dizer é que um clichê não é um provérbio. Um provérbio tem uma origem popular, geralmente, surge em jeito de rima, ou pelo menos de forma ritmada e procura sintetizar atos, realidades e ensinamentos. O clichê é uma frase ou expressão também curta que, um dia, alguém achou que ficaria bem num íman de frigorífico. São, no fundo, um recurso rasca, mas acessível para todos os psicólogos pontuais com os quais nos vamos cruzando. Do ponto de vista da maioria dos dicionários, o clichê é o equivalente ao chavão. E eu acredito, só para poder seguir em frente.

Não os desprimoro. Os clichês só são clichês precisamente porque foram testados e funcionaram. O problema começa quando, por funcionarem, são usados em demasia. Então, deixam de funcionar. Pior, passam a ter o efeito oposto no consumidor; que, para além de um elegante prato repleto de frases recheadas de nada, é servido de uma dose de empenho e interesse ao mais sofisticado estilo gourmet.

Percebo a intenção por trás de quem os cria, percebo a finalidade de quem os usa. Só não os usem comigo. Se me querem aconselhar a ser paciente, a não tomar decisões precipitadas, façam-no. Façam-no todas as vezes que quiserem e acharem necessárias. Mas, antes, façam-me um favor. Não me digam para não “agir de cabeça quente” (muito menos em tempos de pandemia) e, principalmente, não me digam para “viver um dia de cada vez”. Como se pudesse viver sábado e domingo em 24 horas e ficar na esperança de vos ouvir menos um dia por semana.

A vertente do clichê que mais me incomoda é precisamente a de dar a entender que tem como objetivo último o conforto e aconselhamento da pessoa a quem nos dirigimos. Como se não bastasse, transmitem ideias muito distintas, por vezes contraditórias. Que marque o primeiro golo quem nunca, aquando de um momento menos bom, recebeu a tão inovadora sugestão: “Agora é bola prá a frente, que prá a frente é que é o caminho!” imediatamente seguida de: “Às vezes é preciso dar um passo atrás, para dar dois à frente!”. Aqui, preciso de uma pausa. Para trás? Mas o caminho não era para a frente? E a bola? Deixo-a sozinha? Que raio de desporto é este? Às tantas, já não é o meu problema ou a busca por um conselho que me incomoda. Às tantas, eu percebi que “tenho de ter calma” em situações de stress desde a primeira vez que mo disseram. Às tantas, nem precisavam de mo ter dito!

E é engraçado que “o tempo cura tudo” menos a repulsa que sinto por estas expressões. A culpa não é das frases, atenção! A culpa é vossa e, não vos podendo insultar, insulto-as. Mais uma vez, compreendo o porquê de as usarem. Não compreendo o porquê de não usarem mais nada.

Às vezes, quando a vida me dá limões, não quero fazer limonada. Se não gosto do fruto, também não vou gostar do sumo. Às vezes, gostava de dizer à vida: “Obrigada pelos limões!” – e esborrachá-los nos olhos de quem me diz que “se fosse fácil estariam cá outros”. E, quando já em desespero, tudo o que quero é deitar as mãos à cabeça, nem a posso baixar. A cabeça é “para cima, senão a coroa cai”. O clichê é abstrato. Não sei bem quem ele é, mas ele sabe quem eu sou e dá a vida por me irritar.

Agora mais calma, assumo: eu uso o clichê. Até porque só lhe podemos dar esse estatuto depois de o usarmos exaustivamente. O clichê só é reconhecido como clichê quando já quase ninguém o usa, quando se torna numa piada. Rimos durante duas semanas de quem ingenuamente ainda lhes dá uso, contudo, quem os recicla durante anos, não merece compreensão. Ninguém é aluado a esse ponto.

Retomando, todos o usamos a certo ponto. O ideal é não o fazer, o recomendável é tentar disfarçá-lo. Invocá-lo na sua forma mais crua é assumir que a situação que vos colocam não é merecedora de dois breves minutos de reflexão.

Queria acabar com o mais clássico dos clichês, mas não consigo. O “não és tu, sou eu” não se aplica ao término desta relação. Cada vez tenho mais certezas: o problema aqui são vocês. Em jeito de conclusão e para quem, como eu, se irrita com as pessoas que abusam deste tipo de frases, não desesperem. Esta gente não nos incomodará por muito mais tempo. Afinal, “a vida são dois dias”.

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