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Cultura

“Deus existe, o seu nome é Petrunya”: resistir é um ato político

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Klára Dobrev, vice-presidente do Parlamento Europeu, enfatizou a importância de realizadores e realizadoras independentes levantarem questões. Referiu que estes e estas são tão importantes como políticos, na medida em que transportam os seus debates e as suas perspetivas críticas para os filmes e, com isso, poderão mudar o mundo.

Desta forma, a realizadora Teona Mitevska, natural da antiga Jugoslávia, atual Macedónia do Norte, escreveu uma narrativa inquietante e provocatória, que abala com crenças, tradições religiosas e sociais. A protagonista da história é Petrunya, uma jovem mulher de 32 anos que se sente desconsiderada, abusada e silenciada numa sociedade em que as mulheres são impelidas a subjugar-se.

Petrunya vive na cidade de Skópie, na Macedónia do Norte, na humilde casa dos pais, que desejam que a filha conquiste o que socialmente é aceitável para uma mulher da sua idade: um homem, um casamento, filhos e trabalho digno. Porém, Petrunya, apesar de ser licenciada em História, está desempregada e as tentativas de conseguir emprego são infrutíferas. Ela sente-se desvalorizada e humilhada durante as entrevistas de emprego, e numa delas chega a ter de ouvir, por parte do empregador, palavras que a perturbam: “Tens 32 anos, não tens experiência laboral, és gorda, feia e nem para uma queca serves.”

Depois desse episódio, no caminho de regresso para casa, Petrunya cruza-se com um antigo ritual religioso, e decide, espontaneamente, participar, apesar de ser interdito a mulheres. A determinada altura, o padre lança ao lago uma cruz, símbolo de sorte e prosperidade. O objetivo era que a cruz fosse apanhada por um dos homens presentes, mas é Petrunya que, depois de mergulhar no lago, consegue apanhar a cruz. Quando se declara vencedora, o grupo de homens emerge-se violentamente sobre Petrunya, que persiste em reivindicar um direito que é exclusivo aos homens. Esta situação enfurece os devotos e agita a comunidade local, sobretudo a masculina e mais conservadora, mas Petrunya resiste.

Para além de resistir, ela questiona o fundamento que leva uma tradição a excluir mulheres, apenas por serem mulheres.

Aprisionada a um conjunto de crenças obsoletas e geradoras de desigualdades e injustiças sociais, a personagem é um exemplo de irreverência e resistência, um retrato desafiante de uma espécie de heroína.

Petrunya vê uma oportunidade de se afirmar e se libertar. E este episódio, baseado em factos reais, ganha caráter de manifesto e chama à atenção para a realidade que enfrentam muitas mulheres, até na Europa. 

Neste filme, a cruz tem um valor simbólico que transcende a mera conotação religiosa, e ilustra também os tormentos e as inquietações, que podem fazer parte da trajetória de ser mulher. Por outro lado, poderá também significar o poder patriarcal, representado pelas instituições que o defendem: a família, que cultiva uma educação que perpetua a desigualdade entre géneros e onde não são questionados os privilégios conferidos aos homens; o Estado, protegido pela autoridade policial, que se responsabiliza por manter a ordem e vigilância social com base na ideia de que o homem é que deve deter o poder e conduzir a vida social, politica, económica; a igreja, representada pelo padre, que cegamente preserva a moral e os costumes tradicionais relacionados com a obediência e a subordinação da mulher ao homem.

É ainda necessário sublinhar o papel da comunicação social, cuidadosamente representado por uma mulher, que tem um papel chave ao longo da narrativa. A jornalista que acompanha a odisseia de Petrunya, apoia a sua posição e procura documentar e disseminar a sua história de forma pedagógica e participada. Contra as indicações da direção do canal de televisão para o qual trabalha, a jornalista insiste em fazer a cobertura do acontecimento, acreditando que a peça poderá mudar mentalidades. E, através de um discurso questionador, apela à democracia, justiça e liberdade de imprensa.

O filme “Deus existe, o seu nome é Petrunya” é o retrato surpreendente de uma questão local, que é também global. 

Ao longo dos 100 minutos, evidencia-se que uma mulher a agir contra o machismo pode ser um ato político e de liberdade, principalmente numa sociedade em que a violência contra as mulheres e a sua submissão estão, muitas vezes, enraizadas e naturalizadas na cultura dominante.

Neste sentido, é fundamental que o cinema e outras artes tenham este papel questionador e político, que permita agitar a sociedade e denunciar situações de violação de direitos humanos, nos quais se inscrevem os direitos das mulheres. É urgente quebrar padrões e dogmas que alimentam o sistema patriarcal. Promover o debate público e político sobre desigualdade de género e violência é contribuir para uma mudança necessária. E o cinema, com a sua dimensão estética e transversal, poderá ser um dos pontos de partida para a produção desse debate, dessa reflexão e construção de um novo paradigma social. Porque a arte quer-se livre, criativa, insubordinada e transformadora. E é através dela que também se pode reclamar o futuro com que se sonha.

Tal como a realizadora Teona Mitevska afirmou: “o cinema pode ser uma arma, e essa arma poderá ser empoderadora.”

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