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Devaneios

O galão do Senhor Arritmado

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– Arritmia, Arritmia! – exclamava sem contenção o Senhor Arritmado.

– Sofro de Arritmia desde nascença, há sessenta e dois anos que estou fora do ritmo, mas o mundo abranda para mim porque sabe que vale a pena esperar para me ouvir, ah-ah!

– Já sei disso, Senhor Arritmado! O senhor com esses discursos exaltantes fica cada vez mais desalinhado, beba lá o seu galão com calma e não se aflija com as doenças, as políticas… nem com manifestações que tais, fique calmo.

– Ó Silva, Silva, a minha vida é por si só um manifesto, um grito de esperança! Se eu consigo viver numa frequência diferente da do resto do mundo, então todos podemos viver à margem das politiquices, das manias impostas pela sociedade, cada um de nós é um ser criador da sua própria arte de existir.

– Arte de existir? Parecem-me filosofias vazias de sentido…

– Silva, já sei que és um casmurrinho, pá, mas vou te explicar se prometes tentar entender!

– Diga lá, Senhor Arritmado, mas acabe lá o galão que a minha vida é mais do que lhe servir o pequeno-almoço e ficar à conversa consigo!

– Silva, meu bom amigo! Cada dia podes beber os ensinamentos de um homem que sempre viveu no submundo dos arritmados, isso vale mais do que eu beber este galão que todos os dias me serve! Ouve e aprende que os Sem Ritmo menos duram, que fiquem ao menos estas verdades!

– Estou a ouvi-lo.

– Um artista cria, a partir das suas próprias mãos, uma visão pessoal daquilo que ele é em conjunto com aquilo que o mundo lhe dá.

– Entendo isso.

– Somos então, todos nós, criadores de algo poético, que não existia antes de termos nascido. Já dizia o Agostinho isso mesmo, que somos todos poetas que acrescentamos ao mundo sempre algo que ele não tinha antes de chegarmos! Temos potencial, Silva, temos o poder de deixar o nosso cunho nesta vida, de escrever um poema eterno, daqueles que se vão ler até depois de partirmos. Todos têm de saber que não são meras marionetas dentro de um sistema, Silva, somos criadores com uma visão inigualável, cada um pode contribuir de modo único.

– Sim, isso sim! Afinal, somos todos diferentes!

– Exatamente, Silva! Este galão é único no mundo, tu o fizeste e nele está algo só teu que acrescentaste, para além do açúcar.

– É só um galão.

– És só mais uma pessoa.

– Não, eu sou o Alberto Silva!

– Então não é só um galão, é o teu galão, que me satisfaz cada manhã.

– Mas não fosse este seria outro galão de outro Silva qualquer.

– Então se não existisses tudo seria igual.

– Não, senhor! Já nada seria o mesmo, o tal efeito dominó de que falam.

– Entendeste, Silva, seu casmurrinho pensador! Obrigada pelo galão, vou tentar acertar o ritmo do mundo num outro lado, até amanhã, bom amigo!

– À mesma hora o espero, Senhor Arritmado.

 

Márcia Branco

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