Cultura
A História de Uma Serva: a rasura da verdade na distopia ficcional
Em abril de 2017, estreou, no serviço de streaming Hulu, a série A História de Uma Serva (The Handmaid’s Tale). Inspirada na obra homónima, escrita por Margaret Atwood, os episódios seguem os eventos que se sucedem após um golpe de estado nos Estados Unidos da América, responsável pela morte do presidente. O incidente culmina com o poder a ser entregue à fação cristã ultraconservadora, que impõe uma ditadura onde se vive um tradicionalismo doente. A história debruça-se, essencialmente, sob os fortes problemas de fertilidade nestes Estados Unidos distópicos, onde as mulheres que ainda eram capazes de engravidar eram forçadas a fazê-lo.
Sem piedade, mergulha-se o espectador num cenário de inevitável repressão, exploração e abuso do corpo feminino.
Num mundo onde as forças conservadoras e extremistas ganham mais poder, e cada vez de forma mais alarmante, A História de Uma Serva põe em perspetiva a causa da mulher e a luta pela autonomia do seu corpo, bem como ajudou muitos homens a educarem-se mais extensivamente acerca destes tópicos. A questão é: até que ponto é esta educação pertinente?
Porque é que estamos a tratar esta narrativa distópica como um conto preventivo e não como algo que várias mulheres sofreram, e cujas histórias foram apagadas?
Dois meses após a estreia, um homem escreveu no IMDB que sentia medo pela segurança da sua filha: “não porque esta história está a acontecer agora, mas porque está tão perto.” O facto é que A História de Uma Serva não é algo impensável. A história acontece numa distopia futurística, o que leva os espectadores a cair no erro de assumir que algo deste teor não foi já, anteriormente, uma realidade. Mas foi. A realidade das mulheres cujas experiências se encontram escondidas na História: as mulheres negras escravizadas.
Retratando na sua mais influente obra, Mulheres, Raça e Classe (1981), as consequências materiais para as mulheres negras na luta abolicionista e feminista, Angela Davis esclarece uma realidade que as mulheres escravizadas tiveram de viver: “Quando a abolição do comércio dos escravos começou a afetar a expansão da inicial e crescente indústria de algodão, a classe dos donos de escravos foi forçada a confiar na reprodução natural como o método mais seguro de substituir e aumentar a população doméstica escrava. E aí o peso colocou-se na capacidade de as mulheres escravas reproduzirem.”
Também nesta realidade d’A História de Uma Serva, estas mulheres eram avaliadas pela sua fertilidade. E, simultaneamente, não eram vistas como as verdadeiras mães dos seus filhos, mas como meros “instrumentos”. A diferença é que quando estas servas engravidavam não recebiam o tratamento especial que, As Servas que Margaret Atwood imaginou, recebiam.
Infelizmente, não é exclusivo desta série, nem deste livro, a negligência das atrocidades que já foram vividas por vários grupos marginalizados.
Porém, tendo em conta que, no contexto em que vivemos, esta é considerada uma das obras (literárias e cinematrograficas) de ficção feminista mais importante dos nossos tempos, é de salientar que a rasura de diversas partes da História é um problema real, que influencia a nossa perspetiva e a forma como presenteamos o nosso ativismo.
Esta criação não se trata de um aviso para o futuro, como se pode vir a pensar. Trata-se, sim, de uma reimaginação de um problema que, efetivamente, já existiu. Ao abordarmos o problema da falta de autonomia que as mulheres têm sobre os seus corpos e sobre os seus direitos reprodutores como um cenário que pode vir a acontecer num mundo longínquo, descarrila-se a conversa para o abstrato. Mas as consequências da escravatura e o trauma proveniente dele são ainda reais. E uma delas é esta quase total rasura perante a História das pessoas escravizadas – sendo, por isso, imperativo, que o feminismo inclua a mulher negra.