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Artigo de Opinião

Café sem leite: a dose psicológica da pandemia na hora de ponta da geração

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Li, há algumas semanas, A Pandemia Que Abalou O Mundo, o mais recente livro do filósofo esloveno Slavoj Žižek. Este é o título da edição portuguesa, que segue a edição em língua inglesa. Já a edição brasileira preferiu invocar uma das mensagens centrais da obra: a «reinvenção» do comunismo, que Žižek acredita ser proporcionada pela necessidade de responder às imposições da pandemia. O título da edição brasileira é Pandemia: COVID-19 E A Reinvenção Do Comunismo. Mas o que Žižek chama de comunismo é, segundo ele próprio, apenas o reforço de medidas ditas social-democratas, como o serviço público de saúde (talvez reorganizado e coordenado numa escala planetária) e o alinhamento internacional no sentido de «compartilhar recursos». Ele diz que apesar dos ataques que vem sofrendo em decorrência do resgate que faz daquilo que para muitos é um palavrão impronunciável, a sua referência não é nada que já não esteja sendo praticado em alguma escala em diversos países, muitos dos quais sob governos que passam bem longe de qualquer coisa remotamente associada ao «palavrão». A esse «comunismo» o filósofo não vê alternativa senão a barbárie – Comunismo ou barbárie: simples assim! é como ele intitula o capítulo em que de maneira mais desenvolvida define o «dilema».

Terei dificuldades em concordar que uma presença mais atuante e abrangente do Estado como promotor de serviços essenciais possa ser suficiente para reinventar o comunismo. Ao contrário do que tenho ouvido desde a crise de 2008, a morte do neoliberalismo continua sendo um desejo, não uma realidade. No eclodir da crise dos subprimes, pensadores keynesianos decretaram que ela era o (colapso do) Muro de Berlim do neoliberalismo. Doze anos depois, o golpe de misericórdia da vez é a pandemia. Sou totalmente cético quanto à efetividade de mudanças que se originam em contingências e não na premeditada superação de estruturas. É esse ceticismo que faz de mim um radical. Que nada tem a ver com extremismo, mas isto é tema para outra oportunidade.

Para já, cinjo-me ao supracitado livro de Žižek. Não para dizer que com afinco divirjo da ideia de que «estamos todos no mesmo barco», que ele defende com uma ingenuidade deveras estranha para alguém conhecido pela sua singular perspicácia. É óbvio que não estamos todos no mesmo barco, mas este também é um assunto que abordarei noutra altura. O que me fez recorrer a Žižek foi a sua utilização, na referida obra, de uma piada retirada do filme Ninotchka (1939), uma sátira à União Soviética stalinista dirigida por Ernst Lubitsch. A piada é contada pelo personagem Leon d’Algout a Nina Yakushova:

um homem entra num restaurante, senta-se numa mesa e pede ao garçom um café sem natas. Cinco minutos depois, o garçom regressa: «perdoe-me, senhor, nós não temos natas, pode ser um café sem leite?».

Poucas vezes vi uma piada tão estupidamente vulgar resumir uma condição humana complexa com tanta acurácia. Žižek afirma que a pandemia transformou-lhe o café sem leite (o seu habitual isolamento voluntário) em um café simples, «sem nenhuma negação implícita subentendida». Há uma diferença determinante entre um café simples e um café sem leite (ou sem natas), e a analogia com o isolamento forçado pela pandemia faz essa diferença, impercetível no nosso dia a dia pré-pandémico, revelar-se dolorosamente não no conteúdo da chávena ou na sua forma, mas na falta de opção.

Encontro-me prisioneiro dessa condição: antes da pandemia, fustigava-me a impossibilidade de isolar-me, de estar sozinho, de trancar-me em casa para no meu próprio ritmo dedicar-me aos meus projetos pessoais. Após a primeira semana de isolamento, porém, tal desejo já me fustigava como um despautério. De que serve o tempo de sobra que eu tenho para viver de acordo com o meu próprio ritmo e para dedicar-me aos meus projetos pessoais se esse abrandamento e essa dedicação não são voluntários e não oferecem alternativas? Assim, começo a desejar mais o leite do que o próprio café.

O que fazemos nós, os que podemos manter e mantemos voluntariamente o compromisso (moral, ético, humanista, científico, etc…) de colaborar na mitigação do espalhamento do novo coronavírus, é uma espécie de solitariedade, um contributo para a coletividade afirmado na resiliência individualista. Uma resiliência face ao isolamento e aos monstros da nossa própria criação, como cantava Renato Russo.

«Serão noites inteiras, talvez por medo da escuridão».

Sobretudo a nossa geração – esta, de jovens, de estudantes –, embebida num pós-modernismo instigador de um individualismo egoísta e ególatra, acostumada ao conforto imediatista de não ter de assumir responsabilidades geracionais, tem neste momento um dos seus maiores desafios. Muito do nosso filme já foi queimado nos últimos anos. Eu, como brasileiro, admito-o amargamente. O que temos perante nós é a oportunidade de almejar alguma redenção, por um lado, ou a nossa sentença final como geração fracassada, por outro. Que ao menos o café simples nos ponha bem acordados.