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APPS COVID-19: o risco versus benefício do rastreamento

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Devido à pandemia, os países afetados tiveram de tomar medidas excecionais que puseram “em pausa” alguns direitos dos cidadãos. No entanto, a utilização de aplicações de rastreio e as questões éticas que resultam da normalização do uso das mesmas pode levar a que se preveja um mundo pós-pandemia distinto do outrora regime democrático, e cada vez mais próximo de um sistema mais restrito.

A ideia do uso de aplicações de rastreio para controlar as cadeias de transmissão não nasceu em solo europeu. Em janeiro, quando o surto de COVID-19 começou em Wuhan, não demorou muito para que aplicações obrigatórias com base nas coordenadas GPS de cada utilizador fossem utilizadas para controlar as cadeias de infeção. Contudo, a eficácia do uso deste sistema resultou da existência de um governo autoritário que podia impor o uso desta tecnologia a todos os habitantes do país. 

No Ocidente, tendo em vista a replicação do sucesso destas aplicações, a Apple e a Google uniram-se num esforço inédito para criarem um sistema capaz de rastrear cadeias de transmissão ao utilizar o bluetooth. Esta tecnologia voluntária permitiria enviar sinais anónimos que mudariam de 15 em 15 minutos. Caso um dos utilizadores ficasse infetado e a aplicação fosse avisada, todos aqueles que estiveram perto dessa pessoa seriam alertados com uma mensagem com todos os passos a tomar. Os dados seriam apenas armazenados no dispositivo do utilizador, de forma a prolongar o seu anonimato e evitar o uso destes por outras aplicações. Estas empresas alertam que além do anonimato garantido, segundo o Financial Times, se algum governo tornasse a utilização da aplicação obrigatória ou adicionasse informação como a localização, isso seria impedido por elas.

No entanto, para além da eficácia do uso destes sistemas para detetar novos casos depender de um uso mais alargado pela população e do aviso voluntário do doente, a tecnologia usada ainda levanta muitas questões. Uma delas é o facto de o bluetooth não conseguir determinar a posição da pessoa detetada por um utilizador, isto é, se está no mesmo compartimento ou lado a lado, por exemplo. Ainda, alguém que viva e/ou trabalhe numa cidade movimentada poderá receber inúmeros avisos sem existir verdadeiro perigo. 

Uma das primeiras aplicações com base nesta tecnologia foi a TraceTogether. Todavia, uma baixa adesão por parte da população levou a que o governo de Singapura tomasse medidas extras. Desta forma, uma espécie de pulseira com bluetooth passou a ser recomendada a todos os infetados e aos viajantes que chegam ao país. O ministro de Negócios Estrangeiros e também responsável por este projeto afastou, em conferência imprensa, qualquer possibilidade de violação da privacidade do utilizador, já que apenas um número muito limitado de pessoas autorizadas teria acesso à informação e exclusivamente se a pessoa ficasse infetada. Além disso, o ministro afirmou que devido à natureza do equipamento, isto é, à inexistência de conexão com a internet e de um chip que permitiria o registo da localização do utilizador, não seria possível retirar os dados do aparelho sem consentimento e que após 25 dias, a informação é automaticamente eliminada. Desta forma, esta aplicação, ao contrário da que está a ser desenvolvida pela Apple e pela Google, recorreria ao armazenamento de dados para controlar a infeção.

O governo do Reino Unido também resolveu investir no desenvolvimento de uma aplicação, porém, esta não conseguiu ser eficaz o suficiente para justificar o investimento. Isto aconteceu, pois, este sistema, baseado na tecnologia bluetooth, não funcionava em dispositivos da Apple, já que a companhia impede que aplicações usem essa tecnologia em modo suspenso, de forma a poupar a bateria do dispositivo. Assim, o país teve que, como muitos outros, se juntar à espera desta aplicação que será compatível com qualquer sistema operativo. No entanto, nos poucos testes realizados, segundo a Forbes, o sistema não obteve muito sucesso, já que os utilizadores não se sentiam confortáveis ao serem instruídos por uma aplicação e preferiam falar com um técnico de saúde. 

Aplicação portuguesa lançada no final de agosto

Em Portugal, uma aplicação do género, chamada StayAway Covid foi desenvolvida pelo Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC TEC). Apesar de não ser obrigatório, tanto a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) como o Centro Nacional de Cibersegurança (CNCS) estão a fazer uma análise constituída por uma “série de testes” de forma a mitigar “eventuais vulnerabilidades de segurança”. O ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, reafirmou que a recomendação do uso desta aplicação por parte de algumas instituições públicas e privadas poderá ter um papel chave para que a utilização deste sistema seja elevada. 

Tendo em conta as preocupações gerais sobre o uso de dados pessoais por parte destes sistemas, a Human Rights Watch (HRW) divulgou um comunicado que retrata estas aplicações como um “perigo aos direitos humanos”. A organização destaca que colocar informação pessoal ao serviço de tecnologias “não testadas” pode ser o primeiro passo para que em países com governos mais autoritários, como o da China ou da Rússia, onde a localização também é registada, a discriminação e repressão aumentem. 

Além disso, para que estas aplicações possam ser utilizadas de forma eficaz, é necessário que todos possuam um smartphone e conexão à internet. Isto pode dificultar o rastreamento em populações mais pobres e vulneráveis, que também podem ter sido vítimas de vigilância abusiva por parte dos seus governos, tornado mais difícil o seu uso voluntário da aplicação. Desta forma, estas tecnologias podem “reforçar inequalidades sistemáticas enfrentadas por aqueles mais vulneráveis ao vírus”, como avisou Amos Toh, um dos representantes da organização. 

No fundo, o uso ou não destas aplicações vai sempre basear-se no risco versus benefício. Por um lado, a utilização desta tecnologia seria um grande aliado no combate à COVID-19, principalmente no caso de o número de utilizadores ser elevado. Por outro, a eficácia do bluetooth levanta muitas questões, além do uso e armazenamento de dados pessoais. Acresce que um sistema como este não estaria disponível para os mais vulneráveis ao vírus. Como Deborah Brown, investigadora de direitos humanos, disse na conferência da HRW, “antes de recorrermos a tecnologias que usam dados pessoais, temos de fazer as questões básicas: funcionarão? E a que custo da nossa liberdade e saúde?”.