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Crónica

Existir depois do adeus

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Eduardo Quina tem como poema número 14 da obra “Sombras mortas entre os dedos”:

“talvez a eternidade seja isto:
regressar sempre aos mesmos lugares.

há um último copo sobre o balcão
que espera o saciamento do estômago-sem deus nem ideologia-
já adormecido.

o corpo, como sinal de abandono, adormece
dentro do último copo:
náufrago de si mesmo

talvez a verdade embriagada seja mais verdadeira:
mas é a inércia do mundo
que não permite reencontrar a ascese ateia
dos vestígios do sangue.

no jardim continua uma fonte dentro de uma estátua.”

Com o devido atrevimento, irei prosseguir partindo da premissa que se faz presente no primeiro verso e adaptando-a à luz da minha própria amargura existencial.

Talvez a eternidade seja isto: deixar lugares diferentes daqueles que existiam.

Há uma crença generalizada de que quem parte permanece na memória dos que se mantém de corpo seguro na vertical (gravidade, o quanto ajudas!) e que, por isso, vive. O que leva a que, a partir da hora em que todos os verticalistas, conhecedores de tal indivíduo, adotem a posição longitudinal ad eternum, a sua presença no mundo se dissipe sem eco.

Eu diria melhor, a memória não perpetua coisa nenhuma porque a memória se evapora com o seu próprio portador. O património, material ou imaterial, é que é a verdadeira pegada da presença porque cava um fosso no solo impossível de ignorar: ou se cai nele ou se desvia.

Quando nascemos (somos retirados também na horizontal, coincidência?) há já uma complexa estrutura de existências de níveis vários, com camadas e sub-capítulos desenvolvidos, inventados, imaginados. Depois do nosso primeiro suspiro, temos que nos encaixar num sistema maquinal de conceitos, crenças, ideologias e invenções úteis que nos envolvem: é o nosso meio, habitat desnaturado.

Em alguns casos, a nossa família já tratou de nos disponibilizar um património, coisas, situações que são como plasticina onde podemos imprimir várias formas. Ou seja, temos matéria-prima para começar a brincar.

As árvores genealógicas são mais do que um exercício de memória, permitem perceber que antes de conhecermos a nossa existência, já as relações, mais ou menos ancestrais, dos nossos entes, criavam espaço para que chegássemos na horizontalidade com horizontes reais.

Assim, mesmo que não soe mais o nome, que não se imaginem mais as feições, ou se sintam as vibrações da voz de alguém que partiu, o rachar a pedra, a criação de fissuras para avistamentos diferentes, é a maior herança e impressão digital que existe porque se repercute. Tal como o efeito da pedra sobre a superfície da água: não importa quem a atirou, ela move-se e faz mover.

Existimos neste ciclo imparável que nos une, insofismavelmente, e por cada vez que inspiramos as partículas aéreas, estas não serão mais iguais para quem as apanhar de seguida.

A eternidade é prolongarmos uma ideia para que se converta na verticalidade de outrem. A eternidade é soprar uma mentira para se fazer história carimbada de mito. A eternidade é inventar a roda para que os braços do amanhã se cansem menos.

A eternidade é certeza inquebrável: “no jardim continua uma fonte dentro de uma estátua”.

 

Márcia Branco

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