Cultura
O mundo de Dino d’Santiago
Num passeio pelo Porto, num fim de tarde de outono, Dino d’Santiago é fotografado, interage com quem o aborda e responde a perguntas.
Dino irradia luz e ilumina todos aqueles que o rodeiam, que trata como amigos desde o primeiro momento. Precursor como artista, como músico criativo e inegavelmente talentoso, sobe ao palco da Super Bock Arena, a 26 de novembro, para apresentar o seu disco Kriola, que nos traz novamente uma sonoridade única e que conta com várias colaborações, entre as quais Julinho KSD, Vado MKA e Nelson Freitas.
Está de volta à também sua cidade, que o ama como um dos seus – porque, na verdade, o é.
Como te sentes por estar de volta ao Porto?
Sinto-me uma criança. É um chegar a casa que facilita tudo. Eu sinto que a vida me está a correr bem pela reação dos meus amigos, eles são os primeiros a apostar tudo, a sentirem orgulho, a sentirem-me como sua propriedade e isto é muito fruto deste Norte que me rege.
De que é que sentias mais saudades?
Sou-te franco, da francesinha, como a do “Capa Negra”. Ainda hoje, fui subir o Bom-Jesus em Braga e comi uma. Sou mesmo fã! Depois, as minhas tripas à moda do Porto.
Também sinto falta da verdade das pessoas. Tenho saudades do “máno”; tenho saudades de ensaiar com os Expensive Soul, em Leça da Palmeira; tenho saudades de ouvir vários sotaques, como o do Pancho; tenho saudades de ir à zona industrial bombar; tenho saudades de ir ao Plano B curtir; tenho saudades de ver as praias bem cheias; tenho saudades de ir para à Avenida da República, quando o El Corte Inglés abriu, ver a secção dos CD’s e de ir à FNAC de Sta. Catarina curtir os meus livros; e tudo mais.
A energia para quinta-feira, 26 de novembro, está muito alta. As pessoas estão ansiosas por te ver ao vivo e o teu amor pelo Porto é recíproco.
Isso até me arrepia. Eu já fiz tudo – o Primavera Sound, o Hard Club, entre outros. E foi em nome próprio, mas não era só o momento do Dino d’Santiago. Então, este vai ser o primeiro momento em que posso agradecer o quanto esta cidade simbolizou para mim
“Há uma ideia que quando a vida te começa a acontecer e (segundo o olhar das pessoas) aquilo é sucesso, elas pensam que te vais transformar numa Dory e te vais esquecer delas”
Para mim, as pessoas sempre tiveram nome e esses nomes são o que me inspira. Ver a gratidão que sentem quando eu me recordo, faz-me sentir que estamos atrás no lado humano. A sensação geral devia ser de estarmos todos a celebrar.
Faço sempre questão de enviar mensagens pessoais, nas redes sociais. A mensagem que tenho que enviar para 50 pessoas é sempre uma mensagem diferente – não troco só o nome, porque cada pessoa é uma pessoa. Eu não me sinto bem sabendo que alguém investiu tempo a escrever-me e a demonstrar o seu amor ou a sua crítica, e eu passar ao lado. Tens que te educar a não te esquecer que todas as pessoas são iguais e que se hoje tenho eu o holofote, amanhã tem outro e que somos todos filhos da mesma semente.
Kriola é, de todos os álbuns, o mais ativista?
O Kriola já apanhou os EUA a criarem muralhas para não deixar os mexicanos entrarem; apanhou um Iémen numa das maiores crises de fome a nível mundial; apanhou um oceano com cadáveres de refugiados; apanhou um lado homofóbico e um racismo tão presente e tão destacado; apanhou com a extrema-direita a dominar o mundo e a aparecer de uma forma tão descarada, sem receio.
“Hoje em dia, a extrema-direita já não tem máscara. Fazem questão de aparecer sem máscara e se isso não te despertar não estás a fazer nada”
Eu durmo menos, porque estou sempre a pensar. Quando o Bruno Candê morreu, fiquei sem acreditar. Acho que não vou conseguir mais olhar para a vida de outra forma, foi um despertar de espírito e de alma. A cada partilha, sentes pessoas a bazarem de te seguir e isso faz-me bem, porque penso que quem está comigo é quem sente como eu sinto. Quando a mensagem é escrita e tu quase que consegues sentir a pessoa dou tudo.
E o Kriola é isso: é o reflexo do estar no momento presente, a pensar, e não renegar responsabilidade social. O Kriola é esse manifesto (de alegria, também), onde eu tenho a primeira canção de amor, que é realmente só sobre um amor a viver o lado feliz, contrariamente às anteriores, muito marcadas pela minha herança portuguesa, que eram sobre quando sofria ou fiz sofrer. Na “My Lover”, foi deixar-me ser piroso e lamechas. É um manifesto de liberdade.
Muitos consideram-te uma das pessoas mais genuinamente amáveis do meio – talvez porque basta uma pessoa fazer o bem para contagiar milhões.
Se tu fazes o bem, o bem faz-te bem. Quando estou num mood negativo, vou logo ver o que é que há para fazer e quem é que está a precisar de ajuda. Ajudo e começo a sentir-me bem. A caridade é uma cena que faz bem ao ser humano.
“Uma vez escrevi: somos seres de hábitos, mas acostumamo-nos mal“
Tens 20 elogios, mas se tens alguém a dizer-te algo negativo, isso vai contaminar-te o dia todo e esqueces-te dos que te deram love. Nessa altura, mudo mesmo o meu chip e a cada pensamento negativo automaticamente penso numa cena boa. É um exercício constante, tens de te disciplinar.
Estava à espera de tudo o que me aconteceu, porque acredito mesmo que me vai acontecer. Ao longo dos anos, fui dizendo ao meu pai que era ali que ia “bater”, mas nunca era eu, eram os projetos em que estava. Até chegar a 2018, em que realmente aconteceu o que eu sentia, que era eu cantar a minha verdade, o que me iria transportar para as pessoas.
Consegui concretizar o sonho de levar os meus pais a Roma. São muito crentes, então levei-os a várias igrejas, tantas que até sentiram que tinha ultrapassado o limite, mas dei o meu melhor. Só tenho de ser grato.
Nas tuas canções sente-se a boa onda e a boa energia – mesmo quando abordas temas como a saudade ou o arrependimento. Isso sente-se, por exemplo, na “Como Seria”.
Isso é brutal. O Mundu Nôbu foi um processo de muita autoeducação. Gravei todas as canções acústicas e, depois, quando já tinha trazido as minhas raízes, quis trazer também o meu lado do hip-hop, que é muito forte. Eu preciso dessa pulsação.
O Kalaf e o Seiji demoraram dois anos a encontrar o híbrido que não violasse as minhas raízes, nem fosse soft demais que o meu pessoal do hip-hop não sentisse, mas o que é certo é que foram estes os primeiros a reagir, ou seja, cumpri o que queria. E tinha medo que o pessoal mais conservador (de Cabo Verde; ou o pessoal do fado, com quem também trabalhei muito) dissessem que eu estava maluco…, mas não, foi ao contrário.
“O pessoal disse: até que enfim que não estão a replicar, e estão a trazer cenas novas”
A “Como Seria” nasceu no dia em que ia entregar o álbum. O Seiji mostrou-me o beat e o Kalaf deu-me a dica de usar as cenas das minhas relações neste som e de contar uma história em que olho para uma relação que não é perfeita, como a da Beyoncé e do Jay-Z, mas que quando estão juntos são fortes. Saiu-me logo: “Like Beyoncé and Jay-Z” e o resto foi surgindo. Dissemos à label para voltar atrás e foi o som que mais disparou, por isso um disco só está pronto quando está pronto.
Também desenhas. Tencionas inserir essa vertente em mais projetos?
No youtube há uma versão do “Mundu Nôbu” todo desenhado por mim, em time-lapse. Todas as canções, da número 1 à número 10, têm ilustrações minhas. Foi um voltar novamente a desenhar. Parei muito tempo porque já tinha caixas de fotos que prometi que ia desenhar – o pessoal ia dando fotos, que acabaram por ficar paradas. Então fiquei ali uns dez anos sem desenhar, porque não conseguia desenhar como um mercenário.
Este foi um ressuscitar desse meu desejo de desenhar e quero, no futuro, fazer com que isso aconteça mais vezes na minha obra.
Começaste no R&B e no Soul. Também fazes parte do hip-hop e, depois, começaste a explorar e a dar o teu lado ao funaná e ao batuque. O Mundu Nôbu e o Kriola têm a mesma influência, mas são sonoridades diferentes. O que é que gostavas de explorar agora?
No Mundu Nôbu eu vim das raízes – fui gravar tudo a Cabo Verde e quis trazer esses ritmos para dentro de Berlim, de Londres, de Lisboa. Foi um êxodo propositado, saí do campo para a cidade e tentei, então, criar esse Mundu Nôbu.
E o Kriola foi o movimento oposto, foi já estar aqui na cidade. Agora, dentro da cidade, quis criar os sons industriais que essa cidade tem, mas com base nos ritmos raiz, do batuque e do funaná e a clave do semba e do kizomba também, mas já todo ele mais eletrónico, vestindo a pele do sítio onde estou. É por isso que se sente essa diferença – apesar de se sentir a mesma atitude em termos de mensagem, de métricas e de flow.
“Este som já é diferente porque enquanto um nasce no campo, o outro nasce na cidade. E, portanto, vão ter texturas diferentes”
Tens algum projeto internacional em vista, de que possas falar? Tiveste o “Colors” agora recentemente.
Já realizei sonhos fixes. O Jazz Cafe era um dos meus sonhos e esgotei-o com pessoal que veio de todos os cantos a cantar todos os meus temas. Paris já aconteceu também. Nova Iorque, já estive no Central Park, mas foi em 2015. Preciso de ir a Cabo Verde. Desde o Mundu Nôbu ainda não conseguir ir lá. Já recebi prémios, mas não toquei o disco, então preciso de ir àquelas ilhas e dar tudo, só depois é que vou pensar noutra coisa.
“Quero levar [para fora do país] a minha cena eletrónica, esse é um dos focos”
Vais ser pai. O que é que gostarias que o Lucas pensasse do mundo daqui a uns anos? Em que mundo gostarias que o Lucas vivesse?
Sinto que, desde muito novo, a minha maior missão em vida é ser pai, educar um filho. Eu não quero esperar que o Lucas encontre um mundo, eu quero mesmo que o Lucas venha criar esse mundo novo. Claro que tenho uma ideia de como gostaria que fosse, mas como sei que esses seres nos escolhem como pais, eu não quero ainda criar um mundo para ele, porque quero surpreender-me.
“Não quero que o meu filho seja um sujeito passivo à espera de uma recompensa. Quero mesmo que ele seja um sujeito ativo”
Filho: vem fazer a diferença, respeita a tua mãe, respeita o teu pai, respeita os teus amigos e deixa a tua impressão digital. Eu quero estar aqui a observar. Só espero mesmo que o mundo em que ele for navegar seja mais justo, e que ele não precise de lutar tanto como nós para essa justiça e para essa igualdade. No momento em que ele tiver que seguir, ao menos que já decida com um mundo igual. E aí eu vou descobrir, dentro da igualdade, qual é o caminho do Lucas. E quero aplaudir ou, então, puxar as orelhas.