Quid JUP
QuidJUP: O direito à vacina
Vaccinae
A primeira vacina foi concebida pelo médico britânico Edward Jenner (1749-1823) em 1796. Mais de dois séculos depois, o Reino Unido foi o primeiro país a iniciar a campanha de vacinação em massa contra a COVID-19.
Já no século XVIII o pioneiro Edward Jenner foi vítima de contestação caricatural ao seu projeto de vacina
Foi a 14 de maio de 1796 que Jenner fez a primeira experiência numa criança de 8 anos, de nome James Phipps, comprovando depois o seu êxito ao realizar a experiência em mais pessoas, com sucesso. Normalizou-se, assim, o termo vacina, entendido à época como o método de inocular as pessoas com o vírus da varíola bovina, o qual provém de vaccinae, que significa proveniente da vaca.
Apesar do ceticismo de muitos, comprovado pela difusão de algumas caricaturas que contestavam os resultados de Jenner, a população europeia aumentou, em parte, devido a esta vacinação antivariólica que teve grande expansão.
Do século XVIII até à atualidade
Até finais do século XVIII, os medicamentos eram exclusivamente curativos. O medicamento descoberto por Edward Jenner (uma vacina contra a varíola) não tinha por objetivo curar, mas antes prevenir. A sua descoberta revolucionou, assim, a terapêutica medicamentosa.
Esta seria a única vacina a existir até que o célebre cientista francês Louis Pasteur (1822-1895), 90 anos depois, já no final do século XIX, criasse uma contra a raiva, de acordo com um processo científico, tendo sido o primeiro a compreender o papel dos microrganismos na transmissão das infeções.
Já no panorama nacional, em 1801, Manuel Joaquim Henriques de Paiva (1752-1829) publicou a obra “Preservativo das Bexigas e dos Terríveis estragos ou História da Origem e Descobrimento da Vaccina, dos seus Effeitos ou Symptomas, e do Methodo de Fazer a Vaccinação & c.”, pioneira na expansão da vacina de Jenner em Portugal.
Programa Nacional de Vacinação (PNV)
Entrou em vigor no ano de 1965, incluindo vacinas contra a tuberculose, tosse convulsa, poliomielite, varíola, difteria e tétano. Foi precisamente a vacina contra a poliomielite que iniciou este processo organizado, e foi com ela que se comprovou a importância e o interesse da vacinação em Portugal.
No âmbito do Programa Nacional de Vacinação, a vacinação tende a ser entendida não apenas como um direito, mas como um verdadeiro dever dos cidadãos
Apesar disso, algumas destas vacinas eram já administradas em Portugal antes de 1965 (ano em que foi igualmente instituído o Boletim Individual de Saúde onde estas se registavam). No entanto, não obedecendo a um plano formal, registavam taxas de sucesso diminutas.
Na atualidade, e sendo o SNS guiado por princípios como a universalidade, generalidade e tendencial gratuitidade (segundo o plasmado na alínea a) do número 2 do artigo 64º da Constituição da República Portuguesa (CRP)) , o PNV acaba por ter, como uma das suas ramificações, o intuito de se revelar igualmente universal, gratuito, acessível e recomendado, nunca deixando, para isso, de ser equitativo e inclusivo. No âmbito deste programa, a vacinação tende, assim, a ser entendida não apenas como um direito, mas como um verdadeiro dever dos cidadãos.
Direito à saúde
O número 1 do artigo 168º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia explicita que: “A ação da União, que será complementar das políticas nacionais, incidirá na melhoria da saúde pública e na prevenção das doenças e afeções humanas e na redução das causas de perigo para a saúde física e mental. Esta ação abrangerá a luta contra os grandes flagelos, fomentando a investigação sobre as respetivas causas, formas de transmissão e prevenção, bem como a informação e a educação sanitária e a vigilância das ameaças graves para a saúde com dimensão transfronteiriça, o alerta em caso de tais ameaças e o combate contra as mesmas.”
Verifica-se, portanto, o compromisso de complementar, por parte da UE, as políticas nacionais de saúde, auxiliando os governos de cada país a alcançar objetivos comuns e a superar desafios partilhados, e financiando projetos de saúde em todo o território europeu.
Em Portugal, a preocupação com a saúde pública também se encontra prevista na lei fundamental. Antes de mais, é no artigo 24º da CRP que se prevê o direito à vida, e, como tal, à preservação da mesma. Depois, o direito à saúde propriamente dito é acautelado pelo artigo 64º da mesma lei, já referido anteriormente.
Estando previsto no artigo 64º da Constituição da República Portuguesa o direito à saúde, a existência de um SNS acaba por não poder ser mero fruto da decisão política, sendo antes algo que se reveste da natureza de imposição constitucional
Ora, ao considerar a saúde um direito fundamental e o acesso a cuidados de saúde um pré-requisito para assegurar esse direito, que não deve estar dependente da capacidade económica de cada um, e em convergência com as sugestões de várias organizações e documentos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Declaração de Alma-Ata (ratificados por uma longa lista de países, incluindo Portugal), o artigo 64.º da CRP constitui, portanto, um compromisso jurídico fundamental do estado para com a população, no que diz respeito à garantia de acesso a cuidados de saúde de elevada qualidade e acessíveis para todos.
A existência de um SNS, apesar das diferentes conceções políticas acerca da sua operacionalização, acaba por não poder ser mero fruto da decisão política, sendo antes algo que se reveste da natureza de imposição constitucional, e sendo a sua subsistência juridicamente protegida, com o caráter reforçado que a Constituição lhe emprega.
Ainda assim, restam dúvidas quanto à sua atual obrigatoriedade e, consequentemente, efetividade, porquanto o programa em questão consiste num “esquema recomendado” de vacinação, desprovido de qualquer regime sancionatório, o qual, a existir, incentivaria ao seu estrito cumprimento.
A Constituição da República Portuguesa prevê a restrição de direitos, liberdades e garantias, desde que limitada “ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”
É ademais de notar que a CRP prevê a restrição de direitos, liberdades e garantias, desde que limitada “ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” (número 2 do artigo 18º da CRP), em linha, de resto, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão. Com efeito, é neste seguimento que a escolha entre ser vacinado ou não se parece situar num plano menor, quando em confronto com o valor da saúde pública e do bem-estar geral, pelo que, à partida, poderá o direito à liberdade individual ser, neste sentido, restrito.
Sociedade anti-vacina
É natural que a vacinação, pelo processo físico que implica, desperte objeções. A instabilidade política, as fake news, e o extremismo religioso levam também à perda de confiança na vacinação pela população. Se olharmos atentamente para o canto inferior direito da caricatura em cima representada, reparamos que se faz referência às publicações de uma sociedade anti-vacina (“ Publications of Anti-Vaccine Society”).
Muitas vacinas contêm até ingredientes de origem animal, nomeadamente gelatina de porco (utilizada para garantir a estabilidade das mesmas, de forma a que se mantenham seguras e eficazes durante o respetivo armazenamento e transporte), cujo consumo é proibido por diversos grupos religiosos.
A maioria das pessoas aparenta sofrer de uma espécie de amnésia seletiva: as vacinas, por um lado, salvam-nos de doenças, mas por outro fazem-nos esquecer que elas existem
Todavia, basta olhar a experiências passadas com origem na descrença na vacinação pela população da época para concluirmos que não conduzem a um bom resultado. Uma dessas experiências sucedeu-se no ano de 1872, em Estocolmo, quando a maioria da população se recusou a ser vacinada contra a varíola e a taxa de vacinação desceu para 40%. Quando uma epidemia assolou a cidade em 1874, a comunidade não estava preparada para os seus efeitos.
Uma espécie de amnésia seletiva
Naturalmente, já cá não está quem viveu num mundo em que a vacina ainda não havia sido descoberta. É após esta conquista científica que muitos sentem uma imensa gratidão por se manterem vivos graças à mesma.
Não obstante, a maioria das pessoas aparenta sofrer de uma espécie de amnésia seletiva: as vacinas, por um lado, salvam-nos de doenças, mas por outro fazem-nos esquecer que elas existem. Tornamo-nos assim negligentes mal a ameaça de uma determinada enfermidade desapareça da nossa existência.
Artigo da autoria de Olívia Almeida. Revisto por José Milheiro e Marco Matos.