Connect with us

Artigo de Opinião

HIGH TECH, LOW LIFE

Published

on

Imagine uma realidade em que uma refeição desejada por nós está ao alcance de um clique em um aparelho de bolso com o qual até podemos conversar, bibliotecas virtuais de livros nos oferecem milhares de opções no conforto do nosso quarto e o acesso a músicas e filmes é tão fácil que passamos horas a tentar decidir o que ouvir ou assistir. Um mundo em que órgãos e membros do corpo são transplantados, viagens tripuladas ao espaço são planeadas, sondas chegam aos confins do sistema solar, há carros elétricos – embora ainda não voem –, um vegano pode comer fake meat concebida com células em laboratório, sem crueldade, e vacinas são inventadas e produzidas em velocidade recorde.

Pouco criativo, admito. Praticamente limitei-me a descrever a realidade de um cidadão médio europeu e de uma considerável parcela da humanidade.

Agora imagine uma realidade em que os empregos são cada vez mais precarizados, em que direitos laborais são empecilhos descartáveis, trabalhadores odeiam sindicatos e adoram bilionários, o termo direitos humanos é um palavrão repugnante e habitações não passam de ativos financeiros. Uma realidade em que a desinformação reina soberana, a ignorância é uma virtude orgulhosa, minorias são agressivamente vilanizadas, multidões de refugiados são desumanizadas às portas de fortalezas embandeiradas e somos vigiados ininterruptamente por inteligência artificial e aparatos tecnológicos que fazem o Big Brother orwelliano parecer pateticamente ingénuo. A poluição avança, o verde sangra, o planeta definha e ingerimos dezenas de venenos diferentes quando comemos uma suculenta maçã.

Novamente, não é preciso qualquer esforço para conceber tal cenário.

A explicação é simples e ululante: é a nossa realidade, o mundo em que vivemos. Com algumas variações consoante contextos nacionais ou regionais, a nossa normalidade é um casamento bizarro – e altamente abençoado pela religião mercadológica – entre avanços tecnológicos e retrocessos humanos no altar da devastação ambiental. A isso somam-se os efeitos da pandemia: ruas vazias, indivíduos encaixotados em cubículos, a virulência galopante das redes sociais (à matrix)…

É claro que há progresso no mundo e a sua evolução não ocorre de maneira uniforme: avanços e retrocessos coexistem. Melhora aqui, piora acolá. E vice-versa. Mas é inegável que caminhamos a passos de tartaruga face às galopadas tecnológicas. Não evoluímos enquanto humanidade com a mesma velocidade e desenvoltura da tecnologia, e essa discrepância, aliada à pujante necessidade imediata de superar anacronismos, gera a sensação de que não progredimos ou mesmo de que retrocedemos. Como, em um mundo hipermodernizado, tão apetrechado e tão materialmente sofisticado, pode haver ideias e atitudes tão primitivas?, indagamos cheios de perplexidade e alguma encenação. E de fato, a nossa geração é a primeira em pelo menos um século a ser mais pobre que a sua antecessora. A vida precária a que somos obrigados a ter, por conta de políticas austeritárias e pela pornográfica concentração de riqueza – e riqueza é poder –, engendra a revolta difusa e despolitizada. A extrema-direita. hoje revigorada, encontra caminho para instrumentalizar o sentimento de insatisfação.

A tecnologia a serviço do consumo e do entretenimento vai servindo como paliativo, mas o mal-estar é crescente. No livro O Mundo Assombrado Pelos Demónios, de 1995, Carl Sagan chama de receita para o desastre o fato de a civilização global depender da ciência e da tecnologia numa ordem em que quase ninguém as compreende, sendo elas dominadas e manejadas por elites segundo os seus interesses exclusivos.

Num trecho, Sagan diz:

«Tenho um pressentimento sobre a América do Norte dos tempos de meus filhos ou de meus netos – quando os Estados Unidos serão uma economia de serviços e informações; quando quase todas as principais indústrias manufatureiras terão fugido para outros países; quando tremendos poderes tecnológicos estarão nas mãos de uns poucos, e nenhum representante do interesse público poderá sequer compreender do que se trata; quando as pessoas terão perdido a capacidade de estabelecer seus próprios compromissos ou questionar compreensivelmente os das autoridades; quando, agarrando os cristais e consultando nervosamente os horóscopos, com as nossas faculdades críticas em decadência, incapazes de distinguir entre o que nos dá prazer e o que é verdade, voltaremos a escorregar, quase sem notar, para a superstição e a escuridão.»

Isolado há um ano em função da pandemia, recorri a diversas estratégias para ludibriar a solidão e a desolação. Todas tiveram algum efeito momentâneo e fugaz, e redundaram em ressacas emocionais cada vez mais dilacerantes. A mais duradoura tem sido refugiar-me em algum passado. Inicialmente, no meu próprio, nas minhas memórias. Atualmente, porém, tenho encontrado refúgio num passado que apenas posso fetichizar: os anos de 1980 e toda a nostalgia que ele desperta em nós, millennials.

Tudo começou quando senti a necessidade de ter alguma banda sonora contemplativa – e sobretudo apenas instrumental – que me ajudasse na árdua tarefa de arregimentar cada gota de concentração nos trabalhos académicos durante o primeiro confinamento, na primavera de 2020. Já tinha tentado Pink Floyd, Godspeed You! Black Emperor e Enya, e precisava de algo que fosse mais suave, menos obscuro e que não me embarcasse em letras filosóficas. O que isso tem a ver com os elementos da nossa realidade? Tudo! Porque foi essa busca que me levou ao synthwave, e este, inicialmente, à temática retrowave. Se tiver de definir em uma palavra o meu mestrado na FLUP, a palavra é sintetizador. Consequência pandémica notável para quem sempre detestou qualquer tipo de música eletrónica.

Acontece que a situação em 2021, a minha em particular, tem até suavizado algumas lembranças de 2020, pelo que regressei ao synthwave num mergulho ainda mais profundo. E lá, em um fundo do poço a cada dia mais cavernoso, não descobri petróleo mas atingi em cheio o cyberpunk. Eu já andava à procura de uma definição acurada para a realidade político-pandémica, ou mesmo biopolítica (no sentido foucaultiano), e só me ocorria distopia. Faltava algo que calibrasse um termo por demasia genérico. Então ambientei o meu quarto com luzes rosa e azul néon, li Neuromancer, do pioneiro William Gibson, assisti They Live (John Carpenter), Blade Runner (Ridley Scott), Divino Amor (Gabriel Mascaro) e a série Stranger Things, tudo no espaço de uma única semana, e convenci-me de algo que muitos já haviam afirmado: vivemos numa distopia cyberpunk.

Ainda não temos carros voadores ou corpos híbridos apetrechados com membros robóticos e cartuchos ligados ao cérebro, mas o essencial faz uma plena varredura na nossa sociedade. HIGH TECH, LOW LIFE é, sobretudo, um slogan, praticamente um brand ideológico. Alta tecnologia e baixa qualidade de vida, simultaneamente o zeitgeist e o leitmotiv do nosso tempo. Fui aos anos oitenta fugindo da realidade presente para retrofuturisticamente desembarcar no substrato frio e decadente de sintetizadores e clichés oitentistas pixelizados.

Continue Reading
Click to comment

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *