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Devaneios

A Menina Escrivaninha

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Uma menina sentada num banco de madeira, de coluna curvada para uma escrivaninha.

Não, nada disto se passou numa época de mesas úteis e de gloriosa beleza.

Mas é tão mais bonito pensar nela assim, na menina, digo, nesta posição escolástica e de cheiro a madeira antiga.

Escrevia porque o seu peito grão de arroz se contorcia de vida exaltante! Estava prenha de sentires, dizeres estranhos à sua condição, de criaturas que respiravam os silêncios, de biodiversidade interna e interior, pedindo, sôfrega, que fossem entornadas em palavras infantis (que é o mesmo que dizer, verdadeiras!).

Lançava o lápis de carvão A2, mordido na extremidade contra a folha mal rasgada de um caderno destinado ao esquecimento da tabuada. Quadriculado. A ânsia de pintar a pele, de dentro para fora, era frenética, cega, rasgava a folha e pronto.

E assim iniciava o bailado dos sentidos. A escrita era veloz, na urgência das palavras cuspidas em invólucro cortante, os seus olhos embaciavam-se de paz, comovia-se no desenho das belas palavras para explicar coisas tão feias.

Que poder tinha a menina sugada pela escrivaninha!

Não desejava ser lida na compreensão, não queria escrever coisas bonitas para serem repetidas, aplaudidas!

Nela, apenas urgia a necessidade de tornar etéreo o mundo no seu peito grão de arroz.

Como soluços ininterruptos, saltavam emoções em vestes ortográficas. A escrita era o abismo para onde se atirava de olhos repousados e calmos. Não cairia mais do que em si própria e, disso, não tinha medo.

O ponto final resolvia revolução daquele momento e enlaçava-se numa lágrima de cansaço. Fim de luta.

Saudades de espreitar a menina no seu ofício sagrado, inclinada para uma escrivaninha sob ténue luz de uma vela. Ou talvez fosse apenas uma secretária esbranquiçada, um candeeiro intermitente, a ponta de um papel amarrotado.

Deixei-me de circunstancialismos.

A menina sentada em posição de escrita podia sê-lo em qualquer lugar.

Assim, por vezes, sentia-se fragmento de um mar longínquo, ou carícia entre as serras transmontanas, ou remendo de um anjo a regressar do céu.

Repito, nunca sonhou em ser aclamada! A escrita era refúgio-mãe contra os seres que a comiam por dentro.

Era muito atenta ao mundo, sorvia a realidade para depois a expirar em imagens únicas, espelhadas na tela da sua genuína essência.

Jamais poderá estar tão certa como no tempo da menina na escrivaninha, mais ou menos emadeirada.

Agora, preocupa-se com palavras, muda-as de sítio, apaga-as, altera-as para outras mais próprias. É ridícula artesã. Como os sentimentos reais apodrecem, injeta doses inúteis de dizeres nus de verdade.

Crescer faz cair os olhos.

Lembrando-se da menina sussurrando versos, nota que nunca riscava palavras, não hesitava em adjetivar o sol. Vertia a dor para não morrer, sempre em verdade!

Verdade! Já não sabia ser-se.

Suplico-te, olhando-te de frente: desiste de falácias floreadas, premiadas pelo revestimento audacioso.

Espreita pela porta encostada do passado, talvez o cheiro a madeira ancestral te engravide os sentidos e sejas só uma menina entortada para uma escrivaninha que imaginaste.

 

Artigo da autoria de Márcia Branco

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