Ciência e Saúde
LIFE BEETLES: Conservar os escaravelhos endémicos dos Açores
O programa LIFE, criado em 1992, é um instrumento financeiro da União Europeia que apoia projetos ambientais e de conservação da natureza, através do cofinanciamento dos mesmos.
Um dos que está atualmente a decorrer em Portugal é o LIFE BEETLES (sigla para “Bringing Environmental and Ecological Threats Lower To Endangered Species”, em português “Diminuir Ameaças Ambientais e Ecológicas a Espécies Ameaçadas”, e que resulta na palavra inglesa para escaravelhos).
Com um investimento global de quase 1,8 milhões de euros e uma duração de 5 anos (janeiro 2020 a dezembro 2024), o principal objetivo é a conservação de três espécies de escaravelhos endémicos de diferentes ilhas dos Açores, e consideradas como “Criticamente Ameaçados”: o Carocho-da-terra-brava (Trechus terrabravensis) da ilha Terceira, o Laurocho (Pseudanchomenus aptinoides) da ilha do Pico, e o Escaravelho-cascudo-da-mata (Tarphius floresensis) da ilha das Flores.
As espécies endémicas de um determinado local são espécies que apenas podem ser encontradas naquele local, e são bastante comuns em ilhas devido ao seu isolamento geográfico.
O JUP esteve à conversa com Telma Figueiredo – Coordenadora de Comunicação do projeto –, para saber mais sobre a importância deste tipo de iniciativas e sobre os desafios à sua implementação.
Licenciada em Biologia pela Universidade de Aveiro, e mestre em Gestão Ambiental e Ecologia pela Universidade de Lisboa, já passou pela Croácia, onde realizou estágios relacionados com ecoturismo, e participou em ações de comunicação ambiental. Neste momento encontra-se na ilha das Flores, a partir de onde contribui para o projeto LIFE BEETLES.
Qual a importância deste projeto?
O principal objetivo é conservar três espécies endémicas dos Açores. No entanto, estas espécies foram escolhidas uma vez que são espécies guarda-chuva, isto é, ao aplicar medidas de conservação direcionadas para elas também se está, indiretamente, a conservar outros artrópodes [grupo de animais invertebrados que incluem os insetos, os aracnídeos e os crustáceos, entre outros]. De toda a fauna, o grupo com mais espécies endémicas nos Açores são os artrópodes, e nunca houve um projeto especificamente direcionado para este grupo.
Quais os principais objetivos operacionais?
Uma das grandes ações práticas que fazemos tem a ver com o melhoramento do habitat. Temos de criar condições que sejam ideais para a espécie, tornando o habitat o mais semelhante possível ao habitat natural do qual estas espécies dependem.
Para isso, é necessário fazer ações de controlo e remoção de flora invasora (principalmente aqui na Ilha das Flores, onde existem muitas espécies invasoras como a Hedychium gardnerianum, o incenso, hortências, tabaqueiras, entre outras). Também fazemos a replantação de flora nativa, que obtemos através de viveiros (florestais e do serviço de ambiente). O objetivo é replantar zonas naturais nas áreas de intervenção.
Para dar alguns exemplos mais específicos, na Terceira há uma ação direcionada para eucaliptais, que podem ser potenciais habitats do escaravelho endémico de lá, e, então, vai-se renaturalizar algumas áreas de floresta de eucaliptos. No Pico, as áreas de intervenção são pastagens à volta de uma lagoa, e, então, são feitos acordos com os proprietários e a Câmara para se fazer ações nesses locais. Na ilha das Flores, o trabalho está bastante relacionado com madeiras mortas, uma vez que o escaravelho das Flores se alimenta de fungos.
De forma transversal às três ilhas, vão se aplicar “Soluções baseadas na Natureza” (NbS- Nature-based solutions) de modo a aproveitar a natureza para promover melhores condições nestes locais. Mas esta parte das soluções baseadas na natureza ainda está em fase muito inicial.
Além destas ações mais práticas, no terreno, também são feitas ações de comunicação à população e educação ambiental.
Quais os desafios ao fazer educação ambiental para uma espécie como o escaravelho, que não é tão carismática ou popular como outras espécies?
Quando vamos fazer networking com outros projetos realmente toda a gente fica surpreendida de como é que um projeto sobre escaravelhos conseguiu financiamento da União Europeia. Mas ainda bem que recebeu. Cada vez mais se está a falar sobre os insetos, e os artrópodes no geral, porque as populações estão a diminuir e isso tem impactos a nível económico (as pessoas dão mais atenção quando a economia entra na equação). Estamos a perder muitos polinizadores e a agricultura sofre imenso com isso.
“O que tentamos fazer é desmistificar as ideias negativas.”
Por exemplo, às vezes perguntam-nos se os escaravelhos não são pragas que destroem as culturas agrícolas. É importante explicar que, de facto, existem escaravelhos invasores que têm impactos negativos (por exemplo, o escaravelho japonês pode destruir culturas), mas temos de explicar também que existem outros que até podem ser predadores e alimentar-se dos invasores, ajudando assim a controlar as pragas. Essa é uma das abordagens, através das ligações ecológicas.
Às vezes usamos a abordagem da proximidade de grupos. Por exemplo, a joaninha também é um escaravelho e a maior parte das pessoas não sabe disso. Ou então, em vez de falar apenas de escaravelhos, falamos também das borboletas. As pessoas acabam por sentir maior ligação a essas espécies e podemos fazer pontes e paralelos para falar sobre a importância dos escaravelhos.
Acho que até quem trabalha na área pode achar os insetos algo desinteressantes. Recentemente fizemos uma formação a técnicos de educação ambiental e eles saíram de lá muito mais interessados no tema do que quando entraram. As pessoas assumem que falar sobre insetos é desinteressante, mas tentamos mudar a perspetiva. Toda a gente lida com insetos regularmente no seu dia a dia, enquanto, por exemplo, um lince ibérico não é um animal que se vê todos os dias…E isso é algo que tentamos usar a nosso favor.
O projeto já está a decorrer há mais de um ano, quais os maiores desafios ou limitações que têm sentido?
A burocracia é o mais chato. Às vezes quer-se fazer uma atividade e o pedido tem de passar por muita gente até ser aprovado. E, às vezes, quando é finalmente aprovado já nem faz sentido fazer aquela atividade. E isso é um problema essencialmente burocrático.
No entanto, aqui nos Açores, como é um meio mais pequeno, até pode facilitar nesse sentido porque basta fazer um telefonema ou ter um contacto para tentar despachar a velocidade das coisas.
Os projetos LIFE são cofinanciados pela União Europeia. Qual é que achas que é a importância deste tipo de projetos para Portugal, e para os Açores, em particular?
Penso que a importância está no facto de que muitas regiões não conseguem produzir receitas suficientes para aplicar em projetos desta dimensão. Sem a ajuda duma entidade com mais poder económico é muito complicado. Além disso, o próprio dinheiro que é aplicado no ambiente normalmente é mal utilizado ou mal gerido e, nesse sentido, a existência de uma entidade que fiscaliza e controla pode ser uma mais-valia, já que de certa forma obriga os gestores ambientais a fazerem melhor o seu trabalho.
“(…) muitas regiões não conseguem produzir receitas suficientes para aplicar em projetos desta dimensão.”
As ações de comunicação, educação e voluntariado requerem que exista alguma vontade por parte do público-alvo. Qual a recetividade da população local para participar no projeto?
Quanto às atividades de voluntariado, acho que as pessoas aqui nos Açores são bastante recetivas. Também é um meio mais pequeno onde as pessoas se conhecem, e umas acabam por trazer outras para participar.
Por outro lado, pode ser desafiante. Às vezes cruzamo-nos com pessoas que já têm uma maneira de pensar relativamente a gestores ambientais ou trabalhadores relacionados com o ambiente, e às vezes sente-se alguma descredibilização do nosso trabalho.
O projeto teve início numa situação global atípica, com a pandemia da COVID-19. Sentiram alguma dificuldade extra para chegar às pessoas e fazer este tipo de ações devido a isso?
Por um lado, sentimos que as pessoas estão fartas de estar em casa. Então quando surge uma atividade ao ar livre, como é o caso das ações de voluntariado, há mais vontade de participar.
Mas sim, tem sido mais difícil chegar às pessoas devido às proibições impostas. Há certas atividades que tiveram de ser online e não houve tantas inscrições. Ir às escolas também é mais difícil, há problemas com o transporte, e nas ilhas grandes as pessoas estão menos recetivas ao contacto. Nesse sentido, acho que sim, tem existido um impacto nas atividades. Mas nós temos tentado dar a volta… E até temos conseguido fazer algumas coisas.
Hoje em dia, com o recurso às redes sociais, achas que se consegue chegar a mais pessoas ou há dificuldades em ganhar público online? Quais as vantagens e desvantagens deste tipo de abordagem?
É difícil ganhar público ao início. Nós temos tido bastantes ideias e queremos criar conteúdo e interagir. Mas tem sido difícil aumentar o número de seguidores e interações. O que tentamos fazer é aliar-nos a outros projetos para trocar público. Também há a opção de pagar, mas isso, para já, não é uma hipótese.
Há certas ferramentas no Facebook que se tornaram menos interativas, desde a criação do Instagram, por exemplo, o que limita um bocado a interação e nos obriga a atualizar com as redes sociais que estão mais “na moda”.
Como é que uma jovem bióloga se sente quando começa a trabalhar na área da conservação (e no seu próprio país)?
Sinto-me grata, satisfeita e realizada. Mas confesso que ao início também me senti um pouco assustada. Apesar de estar a trabalhar no meu país, estou a dois mil e tal quilómetros de casa e à distância de dois aviões. Acho que uma das razões pelas quais fiquei com este trabalho foi exatamente por ser num sítio tão remoto, então não houve muita concorrência no concurso. Mas estou muito agradecida e satisfeita com o percurso académico que me trouxe até aqui.
Para saberes mais sobre o LIFE BEETLES visita o website e acompanha o projeto nas redes sociais – Facebook e Instagram.
Texto por Eva Pinto. Revisto por Maria Teresa Martins e Mariana Miranda.