Crítica
O Jogo do Mundo: partida, lagarta, foge folheando o teu caminho
Quem pousar o pé na composição de quadrados que delineia “O Jogo do Mundo” (1963) de Julio Cortázar (“Rayuela” é o título original do livro e “jogo da macaca” a sua tradução literal), só encontrará verdadeiramente uma porta de saída ao fim de 631 páginas e 155 capítulos. E mesmo assim não é este ainda o seu número derradeiro, mas sim 101: é neste capítulo que termina verdadeiramente a história de Horacio Oliveira e Lucía (a “Maga”), de Morelli e as suas ideologias de escritor, de Traveler e Talita. A razão: “O Jogo do Mundo” não é um livro qualquer, que se leia “como habitualmente se leem os livros”, segundo prenuncia o próprio autor logo na primeira página, onde está exposta a “tábua de orientação”.
Se o leitor optar, assim, pela segunda possibilidade apresentada neste guia inicial (porque Cortázar deixa à escolha de cada um, podendo-se ficar pela leitura linear se assim se desejar), envereda num livro que se percorre avançando e retrocedendo entre capítulos, em que há transições súbitas como a de um encontro entre Lucía e Horacio na Ponte des Arts para uma carta endereçada ao The Observer em que se questiona sobre a “escassez de borboletas” em Inglaterra.
“O Jogo do Mundo” é considerado por José Luís Peixoto, no seu prefácio, como “um dos mais importantes livros escritos na segunda metade do século XX”.
Tudo aponta para a ausência de um fio condutor; este existe, contudo, e está implícito justamente na forma desconexa a que o escritor recorreu para montar, engenhosamente, a sua história (“O meu livro pode-se ler como cada um quiser. (…) A única coisa que eu faço é organizá-lo da maneira como eu gostaria de o reler”, de acordo com as palavras de Morelli, a personagem que surge quase como que omnipresente ao longo do livro e que cujas ideias se subentendem estar na base da própria escrita de Julio Cortázar).
E é evidente que há ainda a história propriamente dita e a qual está dividida em três planos de ação: “do lado de lá” (que decorre em Paris), “do lado de cá” (referindo-se a Buenos Aires) e ainda a secção complementar designada por “de outros lados” e que o autor diz ser “prescindível”, onde se juntam os mais variados textos e reflexões.
É por meio destas três referências espaciais que vamos avançando em “O Jogo do Mundo”, esta obra que só foi traduzida para o português 45 anos depois da publicação da sua edição original e que é considerada por José Luís Peixoto, no seu prefácio, como “um dos mais importantes livros escritos na segunda metade do século XX”.
Anos 50, Paris, França. Os dias fazem-se de deambulações citadinas sem rumo, seguidas de serões de leitura “enfiados num café”, de sessões de discos embebidas em drinks onde se escuta Lester Young e Bessie Smith e de longas conversas feitas de frases complexas e palavras caras. É precisamente assim que Horacio Oliveira, argentino de raiz, e o seu círculo intelectual de amigos, o chamado “Clube da Serpente”, vivem o fulgor da cidade parisiense, livres e “à margem das notícias dos jornais, das obrigações de família e de qualquer forma de obrigação fiscal ou moral”.
Distante ainda que integrada no grupo, Lucía, a “Maga”, é a personagem mais intrigante entre todas por ser precisamente o contrário da imagem que dela se cria à primeira leitura: por trás da sua ingenuidade e inocência, que tanto contrasta com a pesada bagagem intelectual dos demais do Clube e que os obrigava a que “tivessem de lhe explicar quase tudo sobre aquilo de que falavam”, a “Maga” é indubitavelmente o centro – até mesmo quando sai de cena, nomeadamente a partir do momento em que o plano de ação transita para Buenos Aires e Traveler e Talita passam a integrar a história.
Aqui, na cidade argentina, Cortázar carrega a fundo no absurdo e no discurso irónico. Também o peso do destino adquire um grotesco protagonismo, pois o facto de Horacio e o casal seu amigo resolverem ir trabalhar num manicómio espelha a evolução mental do próprio Horacio, uma vez que este mergulha numa espiral de loucura e delírio que vai escalando à medida que o fim se aproxima. O motivo que o conduz para tal desenlace é a imagem da “Maga” que nunca deixa de habitar a sua memória e a misteriosa relação entre eles, que se estabelecia “desejando-se e brigando”.
Acima de tudo, Cortázar traz-nos uma poderosíssima desconstrução do modelo tradicional de escrita, através do uso esporádico de termos inventados e da inclusão propositada de erros ortográficos, a título de exemplo.
É certo que há um laivo a pretensiosismo no discurso de Cortázar, como alguns críticos o afirmam. Pode-se-lhe ainda apontar uma falta de detalhes no que toca à caracterização das personagens, pois muito fica por dizer e imaginar. Por fim, ter de se fazer constantes transições abruptas entre capítulos também não é a forma mais confortável de se ler um livro.
Porém, se “O Jogo do Mundo” não tivesse estas particularidades, se não tivesse os seus invulgares jogos de palavras, grande parte do seu charme se dissiparia. Porque, mais do que tudo, é isto que Cortázar nos traz: uma poderosíssima desconstrução do modelo tradicional de escrita, através do uso esporádico de termos inventados e da inclusão propositada de erros ortográficos, a título de exemplo. Há um capítulo em especial que demonstra na perfeição a sua originalidade, quando este coaduna duas partes diferentes da narrativa num só pedaço de texto, alternando-as e levando o leitor a ter de treinar os seus olhos de forma a que lhe seja possível saltar de duas em duas linhas.
Em resposta ao seu amigo Ronald, quando este afirma que “a realidade está aqui e nós estamos inseridos nela”, pelo que negá-la “não faz sentido”, Horacio retorque com uma provocação: “o absurdo não são as coisas, o absurdo é que elas estejam aí e nós as sintamos como absurdas”. Pois o absurdo é também não nos darmos ao luxo de sorrir ao absurdo que são as coisas – e isto fazemos naturalmente ao ler Cortázar.
Artigo da autoria de Nina Muschketat