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Cultura

As doenças do Brasil: o lugar de escuta de Valter Hugo Mãe

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Ao entrar na sala, cada pessoa teve direito a um presente: um poster, com ilustração do escritor, no qual se pode ler a frase “A felicidade já parece um bocado de guerra” que, de certa forma, serviu de base para a conversa que se seguiu.

Uns minutos depois da hora marcada, as luzes baixaram e soou, na voz de Valter Hugo Mãe, um pequeno trecho do livro. Com o ambiente estabelecido, Carlos Vaz Marques foi o primeiro a entrar: falou sobre a verdade poética (não histórica) que considera ter sido perfeitamente conseguida neste romance e sobre a ambição de não só transportar o leitor para uma cultura que lhe é distante, como também imaginar essa cultura, criar-lhe um nome, uma língua, um espaço. A história, ainda que retrate uma comunidade imaginária (os abaetés), levanta questões reais sobre o passado colonial português e a forma como foi imposta a hegemonia do homem branco.

O título (“As doenças do Brasil”) é uma referência ao “Sermão da Visitação de Nossa Senhora”, de Padre António Vieira: “a causa original das doenças do Brasil: tomar o alheio, cobiças, interesses, ganhos e conveniências particulares, por onde a justiça se não guarda, e o Estado se perde”. O autor admitiu que desde que encontrou esta passagem não conseguiu abdicar do título ainda que, de uma forma geral, seja comum no seu processo de escrita abandonar títulos com bastante celeridade.

Honra é fruto da violação de um branco a uma abaeté e, apesar de este ser o personagem central, o autor admite que é Meio da Noite quem o apaixona: um negro em fuga que encontra nos abaetés gentileza e em Honra cumplicidade. Laurentino Gomes, quando questionado por Carlos Vaz Marques, afirma que a história não é credível porque a poesia não tem de o ser: “esta é uma criação do homem branco, esse Brasil anterior aos portugueses, que era idílico, ingénuo, generoso com a natureza”. Anteriormente tinha sido discutido o lugar de fala: será legítimo que um homem branco escreva sobre uma comunidade indígena? Será legítimo que fale sobre as suas lutas? Ou estará a abafar as vozes dos povos originários?

“Os meus livros são um lugar de escuta”

E a sala escutou, atentamente. Valter Hugo Mãe continuou: “não entram na realidade porque não sou detentor da verdade”. Sempre muito consciente, mostrou uma reflexão sobre a questão que admite ser inerente a escrever um livro sobre este tópico enquanto homem branco: “de que maneira a minha voz, mais do que ser uma interferência, pode ser uma forma de ouvir”. Reconhecendo a possibilidade de esta ser uma questão sensível conclui que “todas as conversas de boa fé são legítimas e este meu livro é uma conversa de boa fé”.

Laurentino Gomes caracterizou o romance como “politicamente explosivo”. Mais tarde ou mais cedo a conversa rumou nessa direção. O autor falou da sua sede de justiça (não tivesse ele estudado Direito) e da necessidade de se “lidar com esta estranha coisa que foi feita ao mesmo tempo que fomos para lá [Brasil] tentar exterminar os índios. Deixamos esta consciência racista, plantamos o racismo”. O jornalista brasileiro falava de um racismo silencioso e cúmplice que Valter Hugo Mãe considera bastante óbvio e gritante: “é o instante em que alguém vota Bolsonaro. […] Ele deixou claro o que pensava e o povo votou.”. A sala aplaudiu entusiasticamente, os interlocutores esperaram sorridentes e continuaram a conversa.

Ainda que ao longo do livro haja um constante “mau hálito, uma putrefação”, a visão idílica dos povos originários promete não deixar o leitor indiferente. E mesmo falando de um povo que não existe, o escritor revela que o livro está “cheio de repostas” à sua própria vida. Abaeté significa pessoa gentil e “uma das provas da sua gentileza é a comoção, o choro”, disse Valter Hugo Mãe emocionado, provando que, de facto, o único abaeté que pode existir no mundo é ele próprio.

Por entre emoções e risos, o aniversário não foi esquecido e no final da sessão, o público levantou-se e cantou os parabéns ao autor que admitiu sentir-se “uma criança que faz 50 anos”.

À saída houve sessão de autógrafos e a atmosfera sabia a tarde bem passada, com direito a reflexões que nunca perdem importância. Umas horas mais tarde, às 21:30, decorreu a segunda sessão de apresentação do livro, desta vez com a presença de Pilar del Rio.

Após um dia destes não é de espantar que Valter Hugo Mãe “não se consiga habituar à maravilha de viver”.

Artigo da autoria de Marta Sofia Ribeiro

Fotografias da autoria de Leonardo Machado

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