Artigo de Opinião
Portugal e a legalização da canábis para uso pessoal
Há três semanas, Malta tornou-se o primeiro país da União Europeia a legalizar a canábis para cultivo e uso pessoal. A recente aprovação desta planta incitou-me a investigar o estado do debate sobre este tema em Portugal.
Antes de abordar o caso português, é importante adereçar a atual situação nos restantes países, tanto na Europa como no Mundo, e desmistificar o caso holandês.
O que se discute neste artigo é a legalização da canábis para uso pessoal: isto inclui o cultivo, a comercialização e a detenção deste produto. O que se passa nos países baixos é o consumo de pequenas quantidades (5 gramas por transação), apenas em determinados estabelecimentos. As chamadas “coffee shops” – locais de venda e consumo licenciadas nos municípios. Tudo o resto é ilegal.
Atualmente a utilização desta planta para uso pessoal é legal em países como o Uruguai, África do Sul, Canadá e vários estados norte-americanos, como Colorado, Washington e Alasca. Já na Europa, embora apenas Malta tenha aprovado a legalização, vários países têm debatido esta questão. O Luxemburgo será, muito provavelmente, o primeiro país a juntar-se a Malta, uma vez que o governo já anunciou a legalização da canábis. Itália, ao que tudo indica, irá proceder a um referendo em 2022. Na Alemanha a nova coligação entre SPD, Verdes e Liberais já manifestou a vontade de criar um mercado legal e regulado para a canábis.
Então e em Portugal?
Em primeiro lugar, é importante referir que o debate sobre a canábis no nosso país não é de agora. Na verdade, o Bloco de Esquerda já tinha apresentado uma proposta para a sua legalização, que acabou rejeitada no Parlamento, em 2019. Tal como em muitos países do ocidente, Portugal já aprovou a legalização desta planta para fins medicinais, no entanto, permanece a proibição para uso pessoal.
Em junho de 2021 o tema da liberalização da canábis voltou à casa da democracia. Em cima da mesa estavam os projetos-lei do Bloco de Esquerda e da Iniciativa Liberal.
Foram várias as reações dos partidos. O CDS pediu “rigor técnico” e “responsabilidade”, alegando que “poucos países legalizaram este tipo de consumo”. A proposta foi criticada pelo Chega; já o PAN mostrou-se disponível para negociar. Em 2019, a anterior proposta do Bloco levou a uma divisão na bancada socialista enquanto o PSD reiterou que não houve avaliação pela comissão de saúde.
Quanto às propostas, no essencial, eram semelhantes. A maior diferença, é que o Bloco defende um maior controlo do Estado, nomeadamente no preço de venda da canábis (“o Estado […] define o preço recomendado por grama”), enquanto a Iniciativa Liberal defende a criação de um “mercado livre, aberto e concorrencial”, assente em “preços livres”. Não obstante, exige a validação dos estabelecimentos como pontos de comercialização, bem como a disponibilização de informações inteligíveis ao Estado, de forma a garantir a proteção do consumidor.
Ambos os partidos concordam na idade mínima de compra (dezoito anos), na forma de comercialização (física e online, através de estabelecimentos devidamente autorizadas) e na possibilidade de cultivo pessoal e posse desta substância.
Mas quais são as vantagens e desvantagens da legalização da canábis para uso pessoal?
Agora que termino a parte mais expositiva do artigo, necessária para clarificar a discussão existente sobre este tópico, vou elencar aquelas que identifico como sendo as principais vantagens e desvantagens da legalização desta planta. Algumas são opiniões pessoais, outras, baseiam-se no debate que tem existido em relação a esta matéria.
Em primeiro lugar, a legalização desta planta seria um importante instrumento de combate à criminalidade. A venda clandestina desta droga tem vindo a aumentar (segundo dados do SICAD), o que demostra que a política proibicionista do Estado não evita o acesso ao mercado negro. Atualmente, a canábis representa cerca de metade das receitas dos traficantes, pelo que a sua legalização contribuiria para a redução substancial deste negócio.
Em segundo lugar, a qualidade do produto é muitas vezes modificada (níveis de THC- substância responsável pelos efeitos psicoativos da canábis), o que pode ter consequências nefastas para a saúde. A venda autorizada pelo Estado permitiria um maior controlo do composto, evitando problemas de saúde mais graves.
Outro argumento discutido incide sobre a possibilidade da legalização da canábis reduzir o consumo de outras substâncias mais tóxicas. Segundo apontam alguns dados, nos estados americanos onde a canábis já foi legalizada, as mortes por consumo de opioides sofreram uma redução.
Além disto, a legalização da canábis seria uma fonte de aumento de receita e redução da despesa do Estado. Por um lado, estes produtos estariam sujeitos a um imposto especial, o que aumentaria a receita fiscal, por outro, os gastos no combate à criminalidade seriam reduzidos. Apesar de válido, não considero este argumento determinante na legalização da canábis, uma vez que vejo o argumento económico como insuficiente. A permissão e a liberalização de uma substância que pode colocar em causa a saúde dos cidadãos nunca é justificada pela melhoria da saúde financeira do Estado!
Um contra-argumento muitas vezes utilizado para a liberalização da canábis assenta no facto desta substância não ter sido aprovada na maior parte dos países de referência para os portugueses, tais como os países nórdicos, a Bélgica e a Alemanha (embora neste último esteja muito perto). Não seria mais prudente esperar para ver os resultados neste grupo de países europeus antes de avançar com a medida? Serão o Uruguai, os Estados Unidos e Canadá um ponto de referência importante para Portugal? Por outro lado, vamos estar sempre dependentes dos países da Europa Ocidental para tomarmos qualquer decisão? Se o debate nos outros países se prolongar iremos esperar eternamente? Todas estas interrogações me parecem bastante válidas.
Outro contra-argumento muitas vezes utilizado diz respeito aos efeitos que o consumo desta droga poderá ter nos cidadãos. Embora não promova comportamentos violentos e perturbação da ordem pública, a presença de determinadas substâncias, como THC, poderá provocar adição, e alguns problemas mentais, como surtos psicóticos. Ambos os projetos-leis apresentados no parlamento procuram dar resposta a estas preocupações, limitando a dose diária que cada consumidor pode adquirir.
Mas a liberalização do consumo de canábis não poderá levar ao consumo de substâncias mais pesadas como a cocaína e heroína? A percentagem de pessoas que consumiram canábis sem enveredarem pelo consumo de drogas pesadas poderá refutar este argumento. Contudo, a questão da canábis poder ser uma “gateway drug” – embora improvável, poderia ser mais debatida. O álcool e o tabaco também causam dependência e têm efeitos nocivos para a saúde, no entanto são legais… Este argumento é um dos mais falaciosos. A verdade é que ambos foram implementadas no passado e proibi-los não é uma ideia sustentável. O que se está a discutir é a implementação de uma nova substância nociva. Se o álcool e o tabaco não tivessem ainda sido implementados, também consideraria válida esta discussão.
O mercado negro iria continuar a funcionar, já que vende estes produtos a preços mais acessíveis, visto que não lhes aplica impostos…. É claro que o mercado negro não se extinguiria só com esta medida, mas acreditar que não iria haver uma drástica redução dos consumidores é pouco credível. Muitos cidadãos iriam privilegiar a segurança e a qualidade da substância mesmo confrontados com preços menos competitivos.
E porque não uma solução como a holandesa (“coffee shops”)?
A questão da legalização da canábis parece-me incidir mais sobre a liberalização como um todo. É isso que está a ser discutido em todos os países em que há este debate. No entanto, poderá ser uma alternativa a considerar, apesar de me parecer pouco viável.
Por fim, abordo três questões que me parecem relevantes, mas não têm sido alvo de discussão.
Em primeiro lugar, ambas as propostas sugerem que a venda poderá ser realizada online. Penso que esta alternativa facilitaria o acesso a estas substâncias por parte de consumidores menores de idade. Não me parece razoável colocar um produto com estas implicações disponível de uma forma tão liberalizada. Ainda em relação ao controlo e supervisão do uso desta substância, ambos os partidos defendem a legalização do cultivo pessoal da canábis (BE-cinco plantas, IL-seis plantas). Como será realizado o controlo? Haverá visitas da polícia e das entidades responsáveis pela supervisão? Com que frequência? Ambas as perguntas deixam clara a dificuldade na supervisão se este tipo de modalidade for legalizado.
Para concluir, incido sobre a planta em si. Ambos os projetos visam a legalização da canábis nas seguintes formas: as folhas da planta, mais conhecidas como erva ou marijuana; a resina separada em bruto ou purificada da planta; o óleo, separado em bruto ou purificado, obtido através da planta, as sementes ou todos os sais derivados destes compostos. A verdade é que todas as formas possuem diferentes níveis de THC, seria, portanto, válido considerar apenas a legalização das formas que contêm menos THC, como a marijuana.
Assim, dou por terminado este artigo, cujos objetivos principais eram a clarificação dos leitores sobre a temática da legalização da canábis e a contribuição para a discussão pública sobre esta questão da agenda. Nos próximos tempos, iremos certamente ter desenvolvimentos sobre esta questão que parece ganhar cada vez mais espaço nas diversas assembleias europeias.
Artigo da autoria de António Lourenço Cerdeira