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Artigo de Opinião

A coragem de votar hoje

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Não tarda muito e estamos com mais umas eleições à porta. Não me posso queixar, porque infelizmente ainda há muitos sítios no mundo onde ninguém se pode dar ao luxo de desenhar uma cruz para escolher quem vai governar. Qualquer cidadão minimamente preocupado com o futuro do seu país pondera muito meticulosamente qual será a melhor lista de candidatos que o representará com mais sentido de responsabilidade no epicentro da democracia portuguesa. Mas posso e devo queixar-me de outras coisas, bem como deveriam milhares de portugueses que, provavelmente, se sentirão ainda bastante indecisos quanto às suas intenções de voto.

Portugal está cá no canto da Europa, vai fazendo frente às vicissitudes que compõem a sua história, não renuncia ao seu estatuto de país cujas fronteiras são das mais antigas do continente. Somos uma nação de grandes feitos e conquistas, assinalamos datas comemorativas que sobressaltam as almas mais orgulhosas, empunhamos cravos na mão uma vez por ano, glorificamos quem, no passado, partiu em busca do desconhecido. Enfim, patriotismo não nos falta, ainda que, por vezes, não nos chegue.

O direito que talvez nos seja mais imprescindível é o direito de votar. Vejam bem que nem temos que pagar para o fazer. Mas, humildemente, declaro a minha compreensão em relação a todos os que dizem que não vale a pena votar, que hoje não podem porque há bola, que a conjuntura não lhes permite optar por ninguém, porque ninguém é suficientemente convincente em relação ao rumo que o país vai tomar depois de 30 de janeiro. Tem-se verificado um défice acentuado de participação cívica em momentos cruciais para a sobrevivência do regime democrático, nomeadamente na colaboração no momento de eleger representantes políticos.

Esta situação será tendencialmente pior, na medida em que o poder político, em tempos de esclarecimento dos cidadãos, se curva perante a ofensiva escaldante dos agentes de comunicação social, cujas intervenções são meros reflexos de uma retórica sensacionalista e, naturalmente, mais atrativa para quem gosta de um bom circo. Eu, pessoalmente, fico constrangida com a perversidade destes debates, não só pela conduta dos jornalistas, mas também pela complacência demonstrada pelos candidatos, quando declaram guerra aberta a qualquer diálogo produtivo e informativo, dando preferência à logomaquia típica de políticos de profissão.

Talvez a grande maioria dos portugueses pense que “derrotar o socialismo” não seja suficiente para vislumbrar um futuro melhor; talvez não ache que “tanto Estado” é prejudicial para o modelo democrático; talvez não ache que reformar o sistema fiscal não seja assim tão benéfico para os contribuintes, pelo menos nos moldes em que a proposta é apresentada por cada partido. Afinal, quais são as propostas? Não chega, para o eleitor responsável, ouvir de um que quer estabilidade, de outro que quer baixar o IRS, de outro ainda que quer a prisão perpétua ou que quer uma maioria que traga “estabilidade” à legislatura. No entanto, é este jogo de interesses que domina a troca de ideias (neste caso, não-ideias) a que temos assistido nos últimos dias.

Para além da taxa única de IRS, do crescimento económico e da TAP, pouco mais se ouve nestes debates pré-eleitorais. O que vai ser feito em relação ao problema demográfico? Quais serão as políticas de combate ao abandono do interior e as de incentivo à fixação de famílias e jovens nessas cidades? Haverá aposta nos trabalhadores, no aumento dos salários, na produtividade do trabalho? Qual será o futuro da educação? Quererão os jovens prosseguir a carreira de docência, num país que tem vindo a eternizar um ciclo de desvalorização desta carreira? Teremos uma habitação mais acessível, que não condene mais de metade dos nossos rendimentos ao fim do mês? Qual é o futuro da cultura? Não ouvi propostas concretas sobre estas temáticas e mais algumas, o que revela uma grande desconformidade dos políticos com a realidade socioeconómica dos portugueses.

João Cotrim de Figueiredo afirmou que Portugal está numa corrida com outros países da Europa, mas será que ele sabe que estamos numa corrida muito maior contra nós próprios, se sucessivamente nos curvamos perante o neoliberalismo europeu, perante o esmagamento a que estamos sujeitos com o euro? Mais de quarenta anos de democracia e continuamos a ser um país sem objetivos, com uma classe governante que faz da política um negócio, sem olhar aos resultados fracassados de todos os projetos governativos que nos apresentaram até hoje. Contamos com uma direita desorganizada, cada vez mais virada para combater os males do socialismo do que para apresentar soluções; à esquerda, impera uma carência de ideologia que põe em perigo a sua preponderância no espaço político e social, ao defender um Estado muito mais assistencialista do que social. Seria de esperar que estes desafios tivessem sido superados, sobretudo numa época de eleições antecipadas. Mas continuamos à espera de que alguém nos surpreenda com uma proposta palpável, que nos faça levantar do sofá e caminhar até às urnas.

Artigo da autoria de Patrícia Freitas