Educação
Rui Pereira: “Quando nós falamos da educação de hoje, na realidade o que estamos a falar é da sociedade de amanhã”
Doutorado em Sociologia da Comunicação e da Informação pela Universidade do Minho, a sua formação académica passou pela área da comunicação, da filosofia, do documentário e do pensamento crítico. Rui Pereira foi jornalista durante 20 anos, dos quais, os últimos 13, a escrever no semanário Expresso. Galardoado, em 1987, com o Prémio Gazeta Revelação, entre outras distinções, é também autor de publicações científicas e obras de ensaio e reportagem, publicadas e traduzidas em diferentes idiomas. Atualmente, é professor na Universidade Lusófona do Porto e na associação cultural “Os Gambozinos”. A sua relevância no campo da educação e do ensino destaca-se na valiosa presença e discussão dos principais temas inerentes a este campo em Portugal.
Como é que avalia o percurso histórico do sistema de ensino em Portugal? Quais foram os seus principais avanços e objetivos que ficaram por cumprir?
A resposta a essa pergunta é simultaneamente fácil e difícil. Porque partíamos de um ponto muito atrasado, tudo aquilo que realizamos em termos de massificação do ensino foi altamente positivo: a renovação de infraestruturas etc. para que a educação tivesse um lugar efetivo na nossa sociedade, que não fosse só para as elites da sociedade. Eu creio que foi um caminho que, 40 e pico anos depois do 25 de abril está percorrido e que chega inclusivamente até à universidade. Há hoje muitos mais jovens e não-jovens na universidade do que já jamais houve em Portugal. Agora, o problema é que nós partimos de um ponto muito recuado.
As estatísticas do analfabetismo por ocasião do 25 de abril eram cerca de 30%, um em cada três portugueses não sabia ler. Se nós pensarmos que na Noruega, em 1900, a alfabetização era plena no início do século XX, Portugal chega ao último quartel do séc. XX com um em cada três portugueses sem saber ler. Outro assunto é o da literacia, e isto leva a uma segunda questão, que é: sim, em quantidade conseguiu-se, abriu muito a perspetiva a muitos cidadãos portugueses de estudarem, em qualidade, não. Ainda não se conseguiu. Há nichos de grande qualidade, evidentemente, mas quer na investigação, quer no ensino fundamental, mas ainda não se conseguiu e seria difícil conseguir, é mais uma constatação até do que uma crítica. Nós partimos muito tarde de um ponto muito recuado, o que significa que agora não podemos estar no topo dos rankings, mas sobre isso dos rankings há muito para falar, designadamente sobre a ilusão estatística e o poder de controlo de quem controla os rankings, porque aí é que está o verdadeiro poder.
Portanto eu creio que o balanço é positivo, só pode ser positivo. A seguir ao 25 de abril, grandes realizações como o sistema de ensino, uma rede pré-primária que é evidente muito escassa ainda, a rede de cresces, etc. mas que não existia de todo ou só existia para pequeníssimas minorias de populações urbanas. E hoje, uma pessoa que nasça no interior tem expectativas de poder estudar. Isto não existia, era impensável. A mão de obra infantil era recorrente durante todo o tempo do Estado Novo. As pessoas tinham muitos filhos para terem um exército para trabalhar. Portanto, a expectativa de estudar era uma coisa posta fora de causa.
Os aspetos da literacia e das diferentes literacias, aí rompe-se o verniz. Em relação a tudo aquilo que já não é quantitativo e passa a ser qualitativo, nós estamos dramaticamente atrasados e suponho que não podíamos estar de outra maneira. Apesar de toda a demagogia sobre a geração mais preparada, isso é insultuoso para os estudantes. Nós [geração] somos todos analfabetos de pai e mãe. Como é que vocês [jovens estudantes] que vão à universidade não seriam os mais preparados? Grande fineza, não é? Nós nem fomos à universidade, geracionalmente. Portanto, isto é profundamente demagógico, porque não responde à pergunta de o que é que o nosso país faz com a sua geração mais preparada. E este é um problema dramático que nós temos.
“O que é que os governos, estados e regimes, sejam estes quais forem, fazem? Produzem sujeitos que lhes sejam convenientes”
Como é que avalia o papel do sistema de ensino convencional na educação dos alunos durante toda a sua formação escolar?
Há uma colega minha, daqui da universidade, que diz que os estudantes portugueses do ensino básico deviam processar o Estado português por maus-tratos, e eu também acho.
Avalio muito negativamente, não porque é português ou porque é especificamente este. A gente tem que pensar o que é que um sistema de ensino. Não estamos a falar de sistemas da educação, estamos a falar de sistemas de ensino, o que é que fazem, em todos os países? Uniformizam um campo comum de saberes básicos para toda a população, ou pelo menos para a sua grande parte. Claro, aprender a ler tem essa vantagem, deixam de poder ler maus livros e bons livros, têm essa possibilidade, não estou a criticar ou a fazer o elogio do analfabetismo. Mas é fundamental para o desenvolvimento de sistemas de ensino a produção de subjetividades, isto é, a produção do sujeito. O que é que os governos, Estados e regimes, sejam estes quais forem, fazem? Produzem sujeitos que lhes sejam convenientes. Produzem o tipo de homens e mulheres que são o tipo de homem e mulheres que lhes serve. O primeiro passo desta uniformização é o ensino básico, porque as crianças, antes de chegarem ao sistema de ensino, têm as suas famílias e as famílias podem viver de modos muito diferentes: uns jantam às sete da tarde outros jantam às dez da noite etc. Quando se chega ao ensino primário começa a uniformização.
Há um aspeto muito positivo na questão da escola e nesta chegada deste “percurso do abismo” entre o casulo familiar e depois o coletivo escolar, que é: as crianças perceberem que fazem parte de uma coisa maior que cada uma delas. O grupo delas, a turma delas, o conjunto delas é maior do que a soma das partes, eles são parte de uma coisa maior que eles. Isto a gente aprende, ou melhor, devia aprender, sob esta forma e a meu entender, na escola. Em todo o caso, aprende-se sempre, porque há sempre coisa nasce a saber fazer sozinho, o “Eu” começa a dar lugar ao “Nós”, e isso é positivo. Agora, este “Nós” não tem nenhum problema sério quando é constituído em torno dos saberes básicos, estou me a referir à aritmética, às ciências naturais, até à própria gramática. Outra coisa é quando a gente passa para a língua, para o pensamento, para os saberes controversos, para aqueles saberes que são objeto de politização.
Todas as pessoas, mesmo que não se saiba a letra, sabem a música da tabuada. A partir daí, tudo o resto começa a ser altamente controverso. Como é que se ensina história a crianças pequenas? Eu trabalho história com crianças pequenas, filosofia e xadrez, e nunca nenhuma criança de nove ou dez anos chegou ao perto de mim e disse “Ó Rui, há 3 dias que não durmo porque não sei quem foi o primeiro rei de Portugal”, nenhuma.
Quando eu olho para o programa de história, aquilo está cheio de reis de Portugal. Se nenhuma criança perguntou por aquilo, qual é o interesse da escola em responder a uma pergunta que nenhuma criança fez? É precisamente esse, a escola destina-se, nesse sentido, a fazer perguntas que nenhuma criança faria. Isso ensina não apenas que há perguntas que não se devem fazer, como ensina a esquecer-se do valor da pergunta. Perguntar é aquilo que o professor faz para ele por no teste e para passar de classe. Também é aquilo que o juiz faz no tribunal, também é aquilo que o polícia faz no interrogatório, é a mesma coisa. A pergunta é um instrumento fundamental. O que interessa mais na resposta é a pergunta.
Imaginem que a gente faz testes às crianças da seguinte maneira, a gente escreve as respostas e diz: “Agora faz tu a pergunta para esta resposta”, isto é muito mais interessante. É este género de falha crucial e que eu não vou dizer que é intencional porque isto depois são grandes maquinarias. O ministério da Educação é uma fábrica imensa de produção de saberes, grande parte deles, vazios.
Acredita que a escola prepara o aluno com as ferramentas necessárias e complementares para a sua realidade académica, cívica e profissional?
Não. A escola não serve para isso, a escola serve para formar cidadãos dóceis. Bertrand Russel escreveu muito sobre isto: uma coisa é a gente formar boas pessoas, outra coisa é formar cidadãos úteis, a quem podemos chamar boas pessoas e que se tornam a medida padrão da boa pessoa.
Há um grande amigo meu, o Adolfo luxuria Canibal, que diz: “O cidadão bem formado lê o jornal e vê TV”, exato, basta. Salazar definiu isso bem. A gente deve muito ao Salazar daquilo que somos hoje. O valor de Salazar hoje não é um valor ideológico nem doutrinário, é o valor heurístico, para nós nos compreendermos a nós mesmos. O Salazar dizia: “Cada português só precisa de saber ler, escrever e contar”. Hoje, o cidadão bem formado só precisa de ler o jornal e ver TV. Portanto, a escola serve para preparar cidadãos, mas o que é um cidadão? Um cidadão é um individuo que é útil a um determinado sistema social em que se insere. Aquilo que a escola forma são sujeitos, são subjetividades, são produções de poder, é isso que o poder faz, mais do que reprimir e premiar, é altamente produtivo. Michel Foucault deixou nos bem essa ideia vincada. Produz sujeitos, e o sujeito significa simultaneamente o indivíduo e o sujeitado. A escola produz sujeitos sujeitados, ou pelo menos altamente sujeitáveis.
Quando a gente enche de conteúdos crianças muito pequenas a gente está a ocupar o espaço da curiosidade espontânea daquelas crianças. Enchemo-las de quê? Ossos do corpo humano, reis de Portugal, enchemo-las dessas coisas. E eu pergunto-me, porque é que a gente gasta o período espantoso de aprendizagem dos primeiros anos de vida das nossas crianças com ossos do corpo humano e reis de Portugal? É justamente para que não caiba lá mais nada. Se eles quiserem saber os ossos do corpo humano no primeiro ano de medicina, os que forem para ortopedia, suponho que lhes ensinam isso, e ali na faculdade de letras também podem aprender quem foi o primeiro rei de Portugal.
“Aprender a pensar é aprender a construir perguntas e questões”
A questão é, o que é que a gente faz com a aprendizagem com crianças muito pequenas? A gente tem que ensinar a aprender, ensinar a construir perguntas, trazer a pergunta para o centro do palco. Neil Postman, diz que a pergunta é a ferramenta heurística fundamental do ser humano. Ele escreveu um livro chamado “Ensinar como ato subversivo”, em que um dos mandamentos que tem o que deveria ser a escola é que cada professor não pode fazer mais do que um pequeníssimo número de perguntas cuja resposta conheça. Se fizer, a partir dai paga uma multa e os estudantes nomeiam o cobrador de multas do professor, se ele fizer perguntas cuja resposta já sabe. Qual é a ideia do Postman? É que a escola seja um lugar de pesquisa.
Vejam a complexidade que existe nesta fórmula: fundação da nacionalidade. A fundação da nacionalidade implica que uma criação tenha noção do que é um país, do que é uma nação, do que é um estado, do que é uma sociedade e do que é ser independente. Implica um conjunto de saberes que é impossível de administrar convenientemente na base de fundação da nacionalidade. Um conceito destes que depois nós trivializamos não faz nenhum sentido na cabeça de uma criança de 8 anos, nenhum sentido. O que é que eles fazem? Aprendem aquelas palavras que compreendem conforme lhes é dado
Nós temos fenómenos incríveis de retrocesso no plano do ensino básico, nas prestações de provas de crianças do quarto ano em que, por exemplo, é pedido em expressões artísticas a uma garota que ponha a mão no coração e canto o hino nacional enquanto pensa que é o Cristiano Ronaldo. Isto faz parte de um exame de expressões artísticas. Houve um professor que se lembrou de pedir isto, vejam como isto é completamente anacrónico e imbecilizante, coisas como CPLP, porque é que uma criança de 10 anos tem que saber o que é a CPLP? (…)
Por parte dos professores é erro, por parte do poder é produção. Enquanto a gente enche a cabeça com “fémur”, “CPLP”, “rádio”, “perónio” e Afonso Henriques, não pensa, nunca aprende a pensar, e aprender a pensar é aprender a construir perguntas e questões, isso é que é aprender a pensar conjuntamente.
A oportunidade de explorar e aproveitar a capacidade individual de cada aluno é possível num meio sistematizado de educação?
Pode haver, depende do sistema que se empregue. A melhor maneira de isto funcionar era um professor para cada aluno, porque é a melhor maneira de aprender. Uma criança relaciona-se com a aprendizagem através do professor. Ou gosta do professor ou não gosta de química, matemática ou de língua portuguesa.
O debate sobre a escola é um debate profundamente envenenado entre nós e não só, porque começa-se a debater a escola a partir do momento em que as crianças chegam às salas de aula. O importante da escola é isso, mas há outra coisa muito importante, que é de onde é que elas chegaram, de onde é que elas vieram. É muito diferente vir de uma família de classe média-alta, com hábitos culturais e intelectuais eruditos e com acesso à educação e práticas de nível cultural ou vir de uma comunidade em desagregação. Isso são coisas completamente diferentes, aquelas duas crianças são crianças completamente diferentes. Como é que a escola Pública, que é absolutamente fundamental, não há aqui nenhum ataque à escola pública, bem pelo contrário, deve ser o mais reforçada possível em quantidade e qualidade, vai responder a isto? Tem que nivelar por baixo. Portanto, nem aquele que tem possibilidades de avançar mais, avança mais, nem o outro que tem possibilidade de avançar menos consegue avançar seja o que for.
Eu acho uma aberração fazer-se exames a crianças de 9 anos ou 10 anos 11 anos. Uma criança de 9 ou 10 anos está a construir. Não está ali para responder, não é um suspeito de um crime, limitou-se a nascer. Claro que nascer em certas circunstâncias já é crime. Nas sociedades em que se deixa de ter lugar para as pessoas, o nascimento torna-se um crime, um tipo é culpado de ter nascido. Portanto, quando chega aos 9 anos e começa a ser interrogado sob a forma de exame, isto é uma ferramenta de domesticação, muito mais do que uma ferramenta de avaliação, porque não avalia coisa nenhuma.
A conversa meritocrática, aparece por aí muito enaltecida com frequência, muito bem, passam aqueles que têm mérito. Os que têm mérito, aquelas distinções entre as 2 crianças que se sentam no banco da escola que já contribui muito para o mérito, o que é que cada uma mereceu par estar ali na sua situação? Mas depois tem outro problema, imagine que a criança não passa, o que é que faço com aqueles que chumbam? Atira-se ao mar? Os meritocratas nunca esclarecem isto, porque claro, quem enuncia a meritocracia tem de si a imagem do mérito que ele próprio possui, acha-se ele próprio meritório, o que é, em grande parte dos casos discutível, muito discutível.
Depois, a escola não pode deitar por borda fora crianças, tem que ir lá apanhá-las. E como é que as apanha? Para que é que as apanha? Muitas vezes pede-se à escola que resolva problemas que estão a montante da escola. A escola não pode resolver problemas de desigualdades sociais gritantes, nós temos centenas de milhares de crianças à beira da miséria, na pobreza, em Portugal. Como é que estas crianças estudam? Que conversa é esta do sistema de ensino e do mérito? A escola não pode resolver isto.
Claro que hoje, pinta-se por cima, põe-se verniz, põe-se os computadores etc., que é outro disparate. A escola não deve servir para ensinar aquilo que inevitavelmente as pessoas vão aprender. Não vai haver aos 20 anos nenhuma criança que não saiba mexer elementarmente num computador, vai aprender até lá, aprende naturalmente, aprendem uns com os outros. Porque é que a gente está a dar currículos de tecnologias a crianças pequenas, com completas imbecilidades? Para aprenderem programação? Com 11 anos ? Programadores? (…) De maneira que isto é uma forma de produzir imagem de saber.
Nas estatísticas de PISA nós estamos obviamente ótimos, na realidade estamos naturalmente péssimos.
É tão importante saber plantar uma planta quanto saber uma regra gramatical, quanto saber uma tabuada
Partindo do exemplo da associação cultural “Os Gambozinos”, à qual está associado, como descreve a orientação pedagógica da mesma? Em que aspetos é que esta difere do ensino convencional?
Os Gambozinos são uma associação cultural de educação pela arte que trabalha com crianças pequenas, jovens e adultos e que existe há 50 anos. Foi uma associação que se criou na sequência do 25 de abril, do florescimento dos movimentos associativos. O núcleo fundamental dos Gambozinos é a educação pela arte em particular pela música. Eu sou membro da direção dos Gambozinos, e aquilo que os Gambozinos fazem é trabalhar com as crianças, quer sejam os grupos de música, quer seja nas oficinas que fazemos de língua portuguesa, de filosofia, inglês e história, trabalhar com os miúdos de um modo diferente. Os garotos vão prestar provas ao sistema público de ensino, têm uma relação estreitíssima com o sistema público de ensino. Os Gambozinos têm mais de uma dezena de discos gravados, (…) têm uma obra absolutamente notável no sentido da música e da infância em Portugal.
A gente o que faz com os miúdos é: seja qual for a matéria, não hierarquizamos saberes. É tão importante saber plantar uma planta quanto saber uma regra gramatical, quanto saber uma tabuada, são coisas igualmente importantes. Há miúdos que têm obvias dificuldades letivas, por exemplo, mas são formidáveis músicos. Isto permite-lhes terem todos eles um lugar de mérito neste conjunto. Todos nós sabemos alguma coisa, todos nós podemos contribuir para as coisas e receber das coisas. A segunda perspetiva é a globalidade. Uma pessoa não é uma somatória de partes. Quando se olha para uma sala a gente abrange a sala com o olhar. Portanto, todos os ensinamentos e todas as práticas dos gambozinos são globais, no sentido de não parcelar as perceções e reflexões, todas as coisas se cruzam.
Nós ainda agora nas sessões de filosofia andamos a discutir o dilema do prisioneiro, que é uma coisa da teoria dos jogos, a propósito de um tema que foi proposto pelas crianças, discutimos o que é a confiança. Aquilo parte das experiências deles, para elaborações de racionalização mais acima, de abstração maior, de maneira que esta construção de pensamento é um lego. Para ensinar a jogar xadrez usamos muito o micado. Temos que parar antes, depois temos que observar a posição, depois escolher quais são os pauzinhos que vamos tirar e a técnica que vamos empregar. Isto é fundamental para jogar xadrez. Por exemplo, jogar xadrez é fundamental por causa da geometria. O tabuleiro de xadrez é a história da idade media: os reis, os bispos, os cavaleiros, as torres e os peões, e é uma aula de política.
Depois têm uma presença muito grande em palco. Os gambozinos já atuaram em todas as grandes salas, do Centro Cultural de Belém ao Coliseu do Porto. Todos os miúdos fazem balé, é obrigatório a partir do terceiro ano, por uma razão muito simples, é que há cada vez mais crianças que parecem pudins, por causa da inatividade. Então o balé é de facto uma coisa que liga a arte com a educação física, e além disso, contribui para lutar contra o preconceito sobre os homens que se dedicam ao balé, os bailarinos. São atletas formidáveis. De maneira que nós nos gambozinos fazemos um ensino muito integrado, são oficinas: todos os miúdos tocam instrumento, têm o teatro, as expressões, todas elas, com grande paridade a outros conhecimentos que eles precisam.
No final vão prestar provas ao ensino público e normalmente não há problema, a preparação técnica não é problemática… mas aquilo que a gente lá faz é sobretudo formar gente, ajudar gente a formar-se, boa gente. Nós temos um momento à sexta-feira de manhã, a que chamamos “a avaliação”, que é como é que a semana te correu? E aí os garotos que tem problemas, o recreio de uma escola, é um microcosmo dos problemas de uma sociedade inteira, os problemas que nós temos na vida adulta já estão ali presentes no recreio e como é que eles se tratam? Por exemplo, eles não podem dizer aos monitores ou aos professores “O Manelinho fez me não sei quê”, não não, viras-te para o Miguelinho e dizes “Olha Manelinho, tu fizeste me isto assim”, e o Manelinho depois discute o problema, discute o problema perante todos.
Portanto, todas as coisas são discutíveis, são discutidas. Não há nenhuma gaveta fechada nos gambozinos. Trabalham muito com instrumentário, metalofones e xilofones, baquetas… são as crianças que tomam conta daquilo nos espetáculos, nunca se perdeu uma baqueta, nunca se perdeu a lamina de um xilofone. A ideia da liberdade está associada a uma outra, que é a da responsabilidade, e é aqui que entra a ideia, não da diluição do eu no coletivo, não é isso, é a ideia de integração do eu no coletivo, para realizar, por exemplo um espetáculo, para gravar um disco, para fazer um filme. Todas essas coisas passam nos gambozinos.
Nós temos uma preocupação muito grande com os autores portugueses, os gambozinos cantaram uma parte muito dos poetas portugueses, trabalham com grandes nomes da música portuguesa, os gambozinos gravaram as “cançõezinhas da Tila” uma obra que Fernando Lopes-Graça autorizou e mandou a partitura. Morreu um pouco antes da gente completar a gravação, portanto nunca chegou a ouvir aquela gravação. Manuel António Pina era Gambozino fundador.
Há uma ambiência que só é possível fazer num grupo muito pequenino. Aquilo não é possível de fazer com turmas de 30 crianças. Os Gambozinos, nestas oficinas, têm à volta de 40 crianças no total. São grupinhos de quatro, cinco, seis, sete. Não há ideia de classes, um garoto pode estar a estudar uma coisa muito avançada numa área e precisar de recuar noutra área, não há esse problema. Os miúdos fazem pão, por exemplo, uma vez por semana. Fazer pão é tão importante como fazer uma equação, quer dizer, as equações não se comem, o pão até é mais importante.
As bases pedagógicas do ensino alternativo podem servir como uma solução para os problemas do ensino convencional?
Não acredito que isto seja resolúvel assim, pelo menos nas décadas ou se calhar nos séculos mais próximos. Não acredito porque isto é uma coisa de pequena escala, e quando falamos de um sistema de ensino estamos a falar de algo em grande escala. Quem dera que todas as crianças pudessem trabalhar assim, nestas condições. Não quer dizer que fosse com os Gambozinos, não quer dizer que a escola devia ser como os Gambozinos, não é isso. Nós nem sequer nos reconhecemos na expressão “ensino alternativo”, porque isso implicava que aquilo que estávamos a fazer era uma modalidade diferente de ensino e não é isso que a gente está a fazer, a gente tem um projeto de educação. Na verdade, ser-se alternativo implica reconhecer um modelo qualquer predominante, e até inclusivamente opor-se ou rivalizar com ele, e a gente não tem nenhuma relação com isso. No ensino da música, os Gambozinos não têm paralelismo pedagógico intencionalmente. Os Gambozinos não pedem subsídios a ninguém nem aceitam, porque isso cria dependência. Os Gambozinos são uma música que se vai fazendo e que se tem feito ao longo de 40 anos, todos os anos, de maneiras e formatos muito diferentes. A gente não tem nem pretende ter uma forma, nem sequer achamos que exista uma fórmula.
Agora, as pessoas têm que perceber qual é o valor da educação, o valor da escola. Reparem que muitos poucos portugueses, se a gente perguntar “Conhece o António Damásio?” poucos portugueses lhe dizem que sim. António Damásio é um dos principais neurocientistas do mundo, vive nos Estados Unidos, onde trabalha, mas tem uma ligação fortíssima e permanente com Portugal. Mas se eu lhes perguntar “Conhece o Cristiano Ronaldo?”, ainda se riem de nós. Isto significa o quê? O que é que por um lado é mais fácil valorizar numa sociedade e por outro lado que ela está a escolher ou não a via do mais fácil. A partir daqui o lugar da educação, o lugar da escola, são lugares subalternos.
Nós temos séculos de inquisição, nós tivemos décadas de Estado Novo e agora temos décadas de uma massificação de um sistema de ensino, que é tomado não como sistema de educação, mas como sistema de ensino e que é feito com base em lugares-comuns e na repetição de lugares-comuns: a democracia, o cidadão, a educação cívica, a mudança tecnológica, a reciclagem, e acho muito bem que a saibam. Agora, quando estamos a ensinar a uma criança questões do ambiente e proteção do ambiente, sabemos que não podemos nem devemos doutriná-la sobre quem são os grandes responsáveis pelo estado do planeta, porque não são os cidadãos. Nós também temos uma quota parte de responsabilidade, mas não fomos nós quem criou o consumismo, não foram os cidadãos e as pessoas, foi quem precisou de vender coisas. Quem precisou de vender coisas em grande escala foi o sistema capital. Claro que isto também não é para explicar a crianças muito pequeninas, mas também não vamos fazer a doutrinação asséptica de “se não deitas o vidro no vidrão, o planeta acaba por tua causa”.
Nós temos muito cuidado com os Gambozinos, numa educação na qual excluímos a palavra “culpa”. Não há culpa, só há responsabilidade. Há um excerto de Roland Barthes que eu falo muito aos alunos na universidade. Ele diz: “chamo discurso de poder a todo o discurso que engendra a culpa e a culpabilidade naquilo que o escuta”. O discurso sobre a culpa é um discurso de poder, sempre. E nós temos esse dispositivo mental da culpa e isso ajuda a desfazer personalidades, não ajuda a fazê-las, desfá-las como? A partir do momento que eu sou culpado por 100, passo a ser culpado por 1000, ou então, não faço porque me estão a ver, mas mal deixam de me ver eu vou fazer.
“Numa sala de aula a gente está ali um ano uns com os outros, a gente conhece-se, a gente consegue começar a construir linguagens comuns, começa a influenciar-se, a construir juntos, e isto é uma experiência fantástica”
Quais são os principais desafios que devemos encarar agora e no futuro para garantir um ensino de qualidade universal?
Não sei responder a essa pergunta. Havia um grande amigo meu, José Mário Branco, que quando lhe perguntaram pouco tempo antes de ele morrer numa entrevista “Zé Mário, o que é que acha sobre o futuro?” ele disse “O futuro é um problema que está resolvido, não existe.” O futuro não existe, eu também tendo a concordar com ele. Agora, também não me esqueço de um homem que admiro muito, um homem da igreja, Frei Fernando Ventura, que conta a história do Colibri. Há um grande incêndio na selva e a bicharada começa toda a fugir e vai o Colibri, com uma gotinha de água no bico, em sentido contrário, e os outros perguntam-lhe: “Cuidado, há um incêndio, porque é que vais lá?” e o Colibri responde “Eu sei, vou ajudar a apagar”, “mas tu és tão pequenino” “Está bem, mas eu faço o que posso”. Esta ideia do Colibri talvez seja a fresta aberta daquele futuro que não há, enunciado pelo José Mário Branco.
Nos Gambozinos, temos muito essa perspetiva. Isto para mim é um programa de ação individual, de pensamento e de maneira de estar. Se calhar não posso mudar o mundo e se pudesse mudar não sabia em que direção é que o devia fazer. Não confio suficientemente em mim para poder dizer “o melhor é mudar por aqui”, não sei, não tenho a certeza sobre isso. Agora, há coisas que eu sei e há coisas que eu posso ajudar como o Colibri, e aquilo que está ao meu alcance, eu não tenho o direito de me demitir de fazer. E se tiver enganado, alguém que me corrija e vai haver certamente gente que é capaz de me corrigir.
Por isso é que eu guardo da experiência do jornalismo uma coisa muito significativa num balanço de vida: O jornal é uma coisa que serve para forrar baldes do lixo, nomeadamente, serve para a desmemoria. Uma sala de aula é outra conversa. Numa sala de aula a gente está ali um ano uns com os outros, a gente conhece-se, a gente consegue começar a construir linguagens comuns, começa a influenciar-se, a construir juntos, e isto é uma experiência fantástica.
A grande responsabilidade de um professor e também a sua maior gratificação, se as coisas correrem bem evidentemente, é ter posto um grãozinho de areia na vida daquela pessoa, no grande areal da praia que é a vida daquela pessoa. Uma pessoa poder ter a gratificação de ter contribuído para a vida de outra pessoa, só um grãozinho de areia, é uma coisa inexcedível, é uma sensação inexcedível. Eu acho que sou professor por causa disso, é isso que me interessa no ensino e na universidade, não me interessa cá outras coisas, só me interessa isso. Neste sentido, a gente ajuda a fazer gente, todos nós, a gente vai se fazendo, a gente vai aprendendo. E, portanto, eu acho que é o valor do saber contra o valor da brutalidade e da boçalidade, eu creio que esse é o único caminho que nos pode salvar.
E isto tem a ver com sistemas de ensino, mas tem a ver também com pensamento sobre a educação, com ação na educação e tem sobretudo a ver com uma ideia: A educação é profundamente política. Não há neutralidade aqui e não quer dizer doutrinaria ou ideológica, às vezes também é, lixo ideológico sempre houve em todos os regimes e há no nosso e no que havia antes, agora, é um processo altamente político. Quando nós falamos da educação de hoje, na realidade o que estamos a falar é da sociedade de amanhã, porque as crianças de hoje vão ser os adultos de amanhã.
Portanto, que tipo de sociedade é que a gente quer? Quer a sociedade que valoriza o António Damásio e o Cristiano Ronaldo? Ou uma sociedade que valoriza ou o António Damásio ou o Cristiano Ronaldo? É que o Cristiano Ronaldo é muito mais fácil, porque trabalha fundamentalmente com a parte de fora da cabeça e com os pés e o Damásio trabalha fundamentalmente com a parte de dentro da cabeça e dento da cabeça das pessoas. Neste sentido a alta ciência e o desporto de massas não são coisas que se têm de opor, mas uma sociedade deve saber muito bem o que é que valoriza.
Portanto, é preciso a gente ter bem assente aquilo que valorizamos. E essa é a nossa identidade. O problema de identidade está sempre mal posto: quem sou eu? Quem és tu? Isso não interessa, isso é problema de bilhete de identidade e cartão de cidadão. Não, o problema da identidade é o que a gente valoriza. Nós somos aquilo que valorizamos, aquilo que prezamos e que desprezamos, aquilo que dizemos sim e aquilo a que dizemos não. Bom, isto é assim na vida das pessoas e nas vidas das sociedades. Portanto, a gente diz sim a muita coisa que não devia, e diz não a muita coisa que devia. Por isso é que isto às vezes dá um ar de estar mal combinado, e está, um bocado mal combinado.
Artigo escrito por: Vicente Oliveira Ribeiro
Editado por: Tiago Oliveira e João Múrias