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Cultura

As Vozes: a (im)possibilidade de ser livre

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Marcado para as 16h, o lançamento de As Vozes iniciou com um ligeiro atraso que em nada quebrou a curiosidade da composta plateia marcadamente jovem, que poderia causar espanto a assíduos audientes de eventos literários. Após uns minutos de espera, o representante da editora Emporium, Filipe Bacelo, abriu a apresentação do livro de Mariana Henriques Martins, sem poupar elogios à originalidade e atualidade da sua escrita. De seguida, assistiu-se à conversa, em formato híbrido, entre a autora de 24 anos, que se encontrava presencialmente na sala, e Tomás Seruca Bravo, seu amigo e leitor assíduo que, por ter testado positivo à COVID-19, fez-se presente via zoom. O debate foi acompanhado por três leituras de excertos-chave da obra de estreia de Mariana Henriques Martins.

Fotografia: Luísa Villasboas e da Marisa Espinheira

“Se eu pudesse era livre”, subtítulo da obra, foi o ponto de partida do breve diálogo sobre As vozes que, através de uma prosa poética cativante, constitui uma deriva existencial pela vida e pela mente plural de uma jovem emigrante solitária chamada Marina. “O desejo de alcançar a liberdade mental” marca a protagonista da narrativa ficcional, que vive um permanente conflito interior, tentando libertar-se da “dualidade mental”, do pensamento binário presente na cultura ocidental.

Em As Vozes, assistimos a uma critica à lógica reprodutiva do amor romântico, algemado à tradição, e a um “desejo de regresso à infância, ao mundo natural, a um olhar puro, sem o filtro da cultura”, tal como salientou Tomás Seruca Bravo.

O título da obra remete para as diversas vozes que habitam a mente da jovem de origem portuguesa, no seu quotidiano em Edimburgo. Personificadas, as suas personagens mentais criticam a ação da protagonista no mundo. Cada uma delas possui uma história independente, apesar de viverem no interior de Marina. Aparentemente diferentes, ao longo da obra, as narrativas cruzam-se, identificando-se umas com as outras. Elas representam um medo específico que envolve a vivência de Marina.

Perante a necessidade de acompanhar a velocidade e a pressão de produzir do mundo capitalista, estas personagens têm ansiedade, perdem a orientação, tentam não reagir aos estímulos permanentes e fugir à lógica de produção, sempre em busca de uma rutura através da empatia, da liberdade e do amor. As Vozes apela à importância de escutarmos a nossa mente, condição necessária à sobrevivência face aos vertiginosos estímulos exteriores que nos distraem da nossa condição humana.

Fotografia: Luísa Villasboas e da Marisa Espinheira

Segundo a autora, “ao longo da leitura, esquecemos a Marina, para conviver com as vozes”, lembrando um estilo pessoano. Mariana Henriques Martins coloca em questão a ideia de unidade do ser humano, preferindo as ideias de fragmentação e de pluralidade para caracterizar as identidades humanas, que nunca se fecham em si mesmas, pois mantêm sempre uma abertura para o mundo.

Através de um estilo cinematográfico, o leitor assiste a um filme interior polifónico onde as personagens sofrem com um sentimento doentio de desfasamento face ao mundo que as rodeia.

A partir de derivas labirínticas mentais onde o medo, a dor e o desespero reinam, as personagens caem no seu próprio abismo interior, para se reerguerem, reconciliadas com o seu próprio íntimo, e continuarem a caminhar pela periclitante, mas fascinante experiência que é a vida, finalmente livres dos medos que as aprisionavam. Apenas ao aceitarem o caráter indefinível do mundo, as personagens podem ser livres e reinventar-se no seio do misterioso fluxo da vida. Assim, a obra termina com um tom de esperança, com a possibilidade de uma salvação.

Fotografia: Luísa Villasboas e da Marisa Espinheira

Segundo a autora, “o livro joga com uma utopia, isto é, com a possibilidade de romper com as oposições culturais do bem/mal, normal/anormal, conceitos normativos que impedem a nossa mente de ser livre e que tornam a paz numa ideia irrealizável”. Dentro da complexidade dos obstáculos existenciais que o ser contemporâneo vive, As Vozes traz uma rutura com um sistema que nos uniformiza, desiguala, aprisiona e silencia. Através da palavra, Mariana Henriques Martins deixa ecoar nas nossas mentes a possibilidade de uma revolução do pensamento por um mundo onde a liberdade e o amor possam reinar, sem as amarras culturais que delimitam as fronteiras dos nossos corpos.

“Sempre escrevi. Para mim, a escrita funciona como uma terapia, um processo autorreflexivo, de autoconhecimento” – Mariana Henriques Martins 

De momento a estudar História Intelectual na Universidade de Edimburgo, Mariana vê a sua estadia no estrangeiro como um veículo para a sua escrita: “Nas minhas viagens, o contacto com diferentes pessoas, espaços e culturas é um estímulo para a minha escrita”. Questionada por Tomás Seruca Bravo acerca do que podíamos esperar do seu futuro enquanto escritora, Mariana assumiu que, por agora, precisa de viver novas experiências, viajar e conhecer novos lugares para que possa surgir um novo projeto literário.

Artigo da autoria de Mafalda Pereira