CAPICUA: SEREIA LOUCA OU “SEREI A LOUCA”?

Senhora da noite na Figueira da Foz, Capicua diz, num dos seus temas, que “a [sua] ambição é ser inspiração para o futuro”. Com sotaque nortenho, o papel das mulheres na música, a influência das suas origens e mesmo o síndrome de Peter Pan foram tema de conversa.

Podemos começar pelo lançamento do teu primeiro álbum. Como é que o selo Optimus Discos te fez crescer enquanto artista e expandir o teu nome a nível nacional e internacional?

Ajudou-me na divulgação, exatamente. A questão é que quando já tinha o disco quase pronto achei que devia mostrar a algumas editoras, a ver se tinha ajuda na parte da edição e da promoção. Mandei para várias e tive a sorte do Henrique Amaro, da Optimus Discos, gostar do álbum e decidir editar. Para mim foi muito bom porque para além de todo o apoio de promoção, o facto da Optimus Discos ter toda aquela dupla identidade de ter a música para download mas também ter a música nas lojas faz com que o facto de estar nas lojas torne oficial (há promoção, lançamento, assessoria de imprensa…). As pessoas sabem que o disco saiu, mas ao mesmo tempo podem ir buscá-lo gratuitamente. Para mim foi muito importante ter essa ajuda. Eu já estava a fazer o disco por minha conta e risco e estava habituada à promoção no circuito de hip-hop mais underground e a ajuda deles foi importante para chegar a um público mais abrangente e até para profissionalizar um pouco a forma de promover a minha música.

Achas que o público português está mais recetivo ao hip-hop ou acreditas que ainda há um certo preconceito quanto aos artistas e ao seu estilo?

Acho que independentemente da geração, nunca como hoje houve tanta abertura. Quando eu era adolescente e comecei a ouvir hip-hop, as pessoas distinguiam-se na rua porque eram as únicas que usavam calças largas. Hoje em dia vê-se que há “putos” do hip-hop que o ouvem mas também há muita gente de outras “tribos urbanas” que gostam e até ouvem um disco ou outro. Hoje, nas escolas secundárias e nas faculdades, a maior parte dos “putos” ouve hip-hop e está a par, já não é “aquela coisa” de muito alternativa e muito underground como era no passado – apesar de ainda haver um grande underground para ser explorado e divulgado. Acontece que hoje já há mais bandas que chegam a um público mais alargado, já se conseguem promover de uma forma mais profissional, chegar aos festivais… Temos feito um trabalho de abertura lento mas que está a resultar, para o público mais mainstream. Hoje em dia há mais oportunidades para bandas de hip-hop, apesar de eu achar que ainda há algum preconceito por parte da própria indústria musical e ainda haverão muitas oportunidades para serem abertas, nomeadamente nos cartazes de festivais, onde não há muitos nomes de rap, pelo que ainda há muito trabalho a ser feito.”

Como é ser mulher neste “man’s world” que é o hip-hop nacional? Achas que “lá fora” seria mais fácil para uma rapper se afirmar?

Não, acho que o hip-hop é um meio masculino no mundo inteiro, não é só em Portugal. Mas não é só o hip-hop. O rock também o é, tal como o punk, o reggae… Para mim tem sido uma coisa boa porque me dá visibilidade, acabo por me sobressair. As causas pelas quais isso acontece é que não são tão boas. Acho que tem a ver com a nossa cultura. Enquanto não se estimular as mulheres para serem mais competitivas, para conquistarem o espaço público, para darem as suas opiniões, para seguirem as suas vocações e os seus talentos, fazerem música e exporem-se, vamos ter poucas mulheres na música em geral, na política, no desporto, nas empresas… Acho que não é uma questão do hip-hop, mas do patriarcado.

Já que estamos “cá dentro”, falamos de fado. No “Soldadinho” cantas com a Gisela João. Em que medida é que achas que o saudosismo do fado se conjuga com o som mais “forte” do hip-hop?

Eu acho que música é música e o fado e o hip-hop têm uma coisa em comum: a importância da palavra, da emoção que vem na palavra. Os fadistas, tal como os rappers, têm “a coisa” de “cuspirem” a palavra não só com emoção, mas com atitude. A importância do poema no fado também é central e acho que temos mais coisas em comum do que o que se possa pensar num primeiro momento. Aliás, no fado há a desgarrada, no hip-hop as batalhas de improviso. Mas acho que neste caso nem tem tanto a ver com essa proximidade, tem a ver com a música, com essa coisa de nos misturarmos uns com os outros e com a linguagem de cada um, no sentido de fazer a música crescer. E eu gosto disso, gosto de misturar a minha música e as minhas palavras com a música de outras pessoas que admiro e com quem gosto de estar e trabalhar.  A ideia é essa, de não nos “fecharmos nas nossas caixinhas”. Se eu estou a precisar daquela voz ou daquela identidade na minha música, não tenho problema em ir buscá-la a outro estilo de música.

Já lemos sobre o teu sonho de abrir uma sapataria em Cedofeira. Pode mesmo vir a ser um projeto real? Isto é, como é que achas que ia ser a sensação de ver as pessoas usar sapatos da “Sereia Louca”?

Eu sonhei literalmente que tinha uma sapataria em Cedofeita. Nunca pensei muito nisso, … mas gosto de sapatos e gosto da rua de Cedofeita. Podia acontecer. Não acho que fosse uma coisa infeliz mas também nunca pensei em ser comerciante. Não sei, foi um sonho que tive mas até já sonhei com coisas bem mais disparatadas.

Já te ouvirmos falar de Zeca Afonso e Elis Regina. Que outras personalidades influenciam o teu trabalho?

Durante a minha adolescência ouvi muito hip-hop português, mais do Porto em especial, porque foi a cidade onde cresci e foi a “cena hip-hop” em que eu evoluiu, primeiro enquanto writer e depois enquanto rapper, portanto vou dizer Dealema. Foi a banda mais importante da minha adolescência e uma banda que admiro até hoje porque são uma referencia não só musical mas também um exemplo, por todas as razões. Pela sua postura, pela atitude, pela integridade, são um grande exemplo. Depois outros músicos como Sérgio Godinho, Zeca Afonso, a Elis, Caetano, Chico Buarque… esses grandes cantores da música portuguesa e dos anos 70, que era a música que os meus pais ouviam e por isso também me marcou muito. Depois a música que eu ouço hoje em dia, pessoas que até colaboram comigo, como o M7, a Aline Frazão, a Gisela João (as minhas companheiras deste disco que me influenciam) e também toda a música que vou ouvindo. Ser músico é também ser um bocadinho uma esponja, não só de música mas também de conversas, de filmes, de discos. Absorve-se tudo e depois acaba por se ter influências infinitas.

Qual é que achas que é o título que mais se enquadra contigo: “Sereia louca” ou “serei a louca”?

Depende dos dias. Há dias em que essa coisa da loucura está mais presente, no sentido em que para fazer música é preciso sempre uma boa dose de loucura e de coragem. Porque pegar nas nossas emoções, ideias, opiniões e vivências e gravá-las em música e trabalhar nisso durante meses, tornar isso num objeto e depois dá-lo às pessoas e dizer “agora podem criticar à vontade, levar para casa”. Todo esse ato de parir uma coisa tão pessoal e depois entregá-la assim à crítica, que é sempre voraz, selvagem, inesperada… é preciso  ter coragem para isso. Todo o ato de criação é um bocadinho essa coragem. Estamos a trabalhar com as nossas emoções, é muito íntimo, e depois entregamo-las assim ao mundo. Essa loucura é aquilo que está na base de toda a criação artística. E depois há aquela loucura que, às vezes, os artistas têm de querer “brincar a Deus”, ser eternos, deixar alguma coisa para o futuro, ser maior que a nossa própria vida… essa ambição também é um bocadinho ela própria lunática, nada é assim tão eterno. Por isso acho que “serei a louca” é capaz de ser mais próximo daquilo que é o processo criativo e aquilo que me motiva a fazer música.

Achas que todos temos o “Síndroma de Peter Pan”? Tu tens?

Eu tenho. Há pessoas que se calhar não têm, há pessoas que gostam de ter a idade que têm. Quando fiz 30 anos estava muito chateada e as minhas amigas não entendiam. A maior parte delas estava contente por fazer 30 e dizia que era mais feliz agora do que com 20 anos. Eu também sou mais feliz com 30 do que com 20, mas mesmo assim não me apetecia fazer 30. Portanto acho que nem toda a gente tem a Síndrome do Peter Pan e também espero que o meu se vá suavizando com a idade e que, à medida que vá envelhecendo, vá ficando sempre contente pela idade que tenho. Há muitas pessoas que quanto mais idade têm mais felizes se vão sentindo. Mas eu sou uma pessoa que tem muitas saudades das coisas, então acho que nunca me vai passar, porque vou ter sempre saudades do que estou a viver a cada momento. Por outro lado acho que é positivo, porque manter a criança que há em nós é uma boa ideia.