Crítica
benji price: ígneo – Livre Direto aos 90′
João Ferreira, mais conhecido nas ruas por benji price, é um produtor, compositor e engenheiro de som que começou a marcar terreno na música, mais concretamente no hip-hop português em meados de 2016 com a vigorosa chegada ao cenário da Think Music, label da qual ele, juntamente com Mário “ProfJam” Cotrim e Nélson Monteiro era sócio. No seu percurso, o autoproclamado “benzino” começou fundamentalmente por ser o beatmaker da maioria das músicas lançadas por artistas que faziam parte desta equipa, ainda que aqui e ali fosse deixando um ar da sua graça em composições com musicalidade e personalidade estridentes, que materializavam a sua vontade de se expressar também enquanto compositor e voz ativa. Em 2020, benji decidiu assumidamente aventurar-se enquanto rapper ao lado do ponta-de-lança de serviço, de seu nome ProfJam, com quem, através de passes e fintas, passou da defesa ao ataque e fez nascer o álbum “SYSTEM”.
A Think Music fez um estrondo quando chegou, disparando conceitos sonoros e visuais muito ecléticos e proporcionando acesas discussões sobre o novo estilo que introduziu cá em Portugal. E entre tantos artistas conceituados como Prof, Mike El Nite, Lon3r Johny e Sippinpurpp, havia alguém que nunca dava a cara, nunca aparecia, mas que era um dos principais motores desta potência em ascensão. O seu nome? benji price, que, tal como a personagem de “Campeões: Oliver e Benji”, ocupava-se de defender todos os remates daqueles que criticavam a índole adotada por esta comunidade e, simultaneamente, organizar a próxima investida ofensiva dos seus colegas. Dotado de uma perspetiva exclusiva e de uma bagagem musical bastante vasta, deu à luz as batidas “40 oz. Freestyle”, “Trono” e “2am in Shibuya”, atualmente ocultas nas profundezas do Youtube.
Através destes pontapés de price entrei pela primeira vez em contacto com uma postura de pura vontade de singrar, fazer história, exultar as qualidades próprias e vincar a vontade de ser o melhor que me deixou deslumbrado. Foi uma daquelas coisas que eu não sabia que precisava, mas que, quando apareceu, imediatamente surtiu efeito em mim. O talento, a métrica, o wordplay, a melodia, os efeitos, tudo contribuiu para uma experiência única de interesses.
E é com este contexto que pretendo falar do álbum de estreia de João Ferreira. Desde que ouvi as suas primeiras composições, as minhas expectativas relativamente à sua arte subiram descontroladamente. Senti que havia ali algo muito, muito especial e converti-me à persona criada por ser uma figura a quem todos reconhecem virtuosismo mesmo ficando na baliza, mas, simultaneamente, alguém que quando vai para o ataque é para marcar e ninguém duvida de que irá fazê-lo, porque no fundo ele está ao nível dos melhores. E nesse sentido, devo dizer que “SYSTEM” acabou por defraudar um pouco as minhas esperanças. No global, foi genérico, monótono, unidimensional e vazio de conteúdo. E eu só pensava: “Como que os cantores que lançaram “badman ting” apresentam um álbum destes?”. Devo dizer que não sou fã do formato de um álbum, de todo. Se criar uma só boa canção é difícil, quanto mais criar dez, onze, doze faixas memoráveis, que consigam estar em harmonia umas com as outras e, simultaneamente, subsistir de maneira autónoma.
Apesar disso, o guarda-redes fez-se ao bife deixando desde logo clara a sua vontade de o ter por inteiro.
De facto, criou uma obra bastante interessante para ouvidos dispostos a receber e acolher uma personalidade forte, bem patente não só ao nível do teor de cada som, mas também ao nível da musicalidade que os caracteriza. Composto pelos temas: “Gundam”, “Kenshin”, “Oroboros”, “Pó de Cosmos”, “Veni Vidi Vici”, “Mármore”, “Final Fantasy Freestyle”, “Estúpido”, “Judge Dredd”, “Girassóis” e “Daytona” e com participações de xtinto, Mike el Nite e 9 Miller, “ígneo” traduz os vários estados de espírito de benji price, ao mesmo tempo que enaltece a sua ambição no game com pinceladas frequentes de elementos da cultura japonesa.
As participações são ótimas, nomeadamente a de Miller, que entra num registo impressionante, e xtinto, amigo de longa data de price e com uma escrita que é, para mim, a melhor de momento no país. SPLINTER, co-produtor recorrente nesta obra e em constante articulação com o principal interveniente, também entrega beats incríveis, com destaque para “Girassóis”, “Judge Dredd” e, principalmente “Daytona”. De forma mais concreta, diria que estas últimas músicas mencionadas juntamente com a “Estúpido” são as melhores do álbum, com a música em parceria com o filho da Guida e o primeiro single a ser divulgado a saírem mais fora daquilo que é a identidade do projeto.
Apesar destas observações positivas, há que ressalvar a existência de faixas completamente esquecíveis, como Mármore, e vários versos não tão conseguidos. Para lá disto, há que apreciar a versatilidade que benji tem no que ao ritmo e cadência de cada passe diz respeito. A aptidão da sua escrita é também de louvar e permite ao guarda-redes subir no terreno de jogo. Ainda assim, para mim falta um grande remate, aquele som que arrebata, que deixa muitos para canto e se ergue no seio do espólio do hip-hop português. “Daytona” aproxima-se disso, mas receio que o refrão não seja catchy o suficiente para um instrumental tão sinistro.
Perante tudo isto, há dentro de mim um sentimento de profunda dicotomia para com esta abordagem de benji price. Por um lado, a produção e os convidados são ótimos, as melodias variadas e com nuances especiais e o pen game inteligente e com brio. Por outro, sinto que nenhuma faixa corresponde à ambição do autor no sentido em que não há uma que consiga, de forma sólida, ascender ao Santo Graal do rap em Portugal. A espaços, este nível é atingido, mas não de maneira a que possa ser par para outras canções que são, na sua íntegra, sui generis. E, para quem se recorda das prestações do keeper em “solero”, “badman ting” e “sinope”, é difícil digerir esta bojarda sem um amargo de boca. Desta forma, torna-se difícil saber se benzino marcou o livre. É aquela bola que bate na trave, fica a pingar em cima da linha de baliza e depois acaba o episódio. Alguns dirão que a bola entrou totalmente e outros não. Eu cá fico com a ideia de que falta um encosto no esférico para ser golo.
Artigo escrito por João Pedro Pereira