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Cultura

“Vai e põe uma sentinela”: A perda do Norte

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Vinte anos depois do final de “Mataram a Cotovia”, Jean Louise Finch, conhecida por Scout durante a infância, volta de Nova Iorque para Maycomb para gozar as férias e visitar o pai. Tem agora 26 anos, mas facilmente reconhecemos nela a criança irreverente, rebelde e que diz tudo o que pensa sem filtros. É o namorado, Henry Clinton, quem a vai buscar à estação de comboios. Hank, como é conhecido, é um homem mais velho, que combateu na segunda guerra mundial e agora procura estabelecer-se como advogado, seguindo todos os conselhos de Atticus Finch, o pai de Jean Louise. Desde logo fala de casamento e de uma vida a dois, para grande desagrado de Louise, que, para o leitor, é como se ainda fosse a mesma criança que usava calças para escandalizar todos os moradores da cidade. Ao longo do livro, vemos Jean Louise constantemente a rejeitar Hank, e Hank a rir-se, como se ela fosse só uma criança que não sabe o que diz.

De facto, Jean Louise pouco mudou em vinte anos: chegada a casa, continua a ter as mesmas discussões com a tia Alexandra, e a ter uma grande adoração pelo pai, que idolatra. No entanto, à medida que os dias passam, percebe que as coisas não são como eram na sua infância, e que Maycomb não é mais a cidade que a viu crescer. 

Além de haver personagens que dela já não fazem parte, como Jem, o irmão, e o juiz Taylor, agora há tentativas de emancipação da comunidade negra de Maycomb, que procura igualdade,procura frequentar as mesmas escolas e ter melhores oportunidades de emprego, para grande relutância dos moradores. Entre as pessoas que se encontram contra esta manifestação está Atticus Finch, o que contrasta muito com o que se viu em “Mataram a Cotovia”: Atticus defendera Tom Robinson, um negro acusado de violar uma jovem branca, e procurou salvá-lo do linchamento. Jean Louise crescera, então, a acreditar que o pai era uma pessoa diferente, e baseara toda a sua consciência e moralidade nas ideias que aprendera com ele. Como Atticus era a sua sentinela, ou seja, a voz da sua consciência, o momento em que descobre que este apenas defendia os negros se eles não procurassem transcender a sua condição provoca-lhe agonia, como se algo nela tivesse morrido. A isto chama-se crescer, algo que Jean Louise nunca conseguiu fazer, apesar de ter vivido afastada da família durante algum tempo. A isto chama-se ver as pessoas como seres humanos imperfeitos e que cometem erros de julgamento. 

A mensagem deste livro é precisamente essa: mesmo as pessoas mais bondosas podem nem sempre ser tolerantes, pelo que a nossa consciência nunca pode viver em função das ações de outra pessoa. Este livro, no fundo, vem destruir a nossa ideia de Atticus Finch, e até de Jean Louise (pois ela também afirma que nunca casaria com um negro e parece aceitar a ideia partilhada pela família de que Henry não é o homem para si devido às suas origens modestas), mas alerta para a importância de nunca perdermos a nossa identidade nem esperarmos demasiado dos outros. Alerta para a importância de crescer, mostrando que tal implica, muitas vezes, deitar por terra as nossas ilusões e um afastamento das pessoas que antes nos eram mais próximas.

A Jean Louise que abandona as páginas deste livro já não precisa do pai para ultrapassar os obstáculos que vão surgindo. 

Mas também não encontra a voz para a sua própria consciência: simplesmente aceita a realidade à sua volta e desiste da sua luta. “Vai e põe uma sentinela” tem, por isso, um final trágico, porque culmina não na independência emocional e moral de Jean Louise, mas sim na sua perda de referências e na incapacidade de criar referências novas, completamente suas.

Ler este livro não é uma experiência tão fantástica quanto ler “Mataram a Cotovia”, principalmente pelo final mais pessimista e menos poético. No entanto, é uma experiência interessante para percebermos os processos criativos de Harper Lee. Foi um livro rejeitado pelas editoras, que funcionou  como uma espécie de rascunho: ao lerem este livro, conta-se que os editores sugeriram que Lee reescrevesse o texto a partir dos olhos de uma criança, o que levou ao nascimento de “Mataram a Cotovia”. 

Efetivamente, os melhores momentos desta obra são quando Jean Louise conta episódios da sua infância e adolescência, lembrando o tom caricato de “Mataram a Cotovia”. É como se Jean Louise nunca crescesse realmente, permanecendo sempre imortal na nossa memória. Por isso vale a pena ler este livro para lembrar os bons momentos que passámos a ler “Mataram a Cotovia”. Vale a pena ler esta obra, nem que seja para encontrarmos a nossa própria sentinela, refletindo sobre ela, não esperando que Atticus e Jean Louise salvem o nosso mundo.

Artigo escrito por Margarida Inês Pereira

 

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