Opinião
Vontade e Liberdade, Anarquia ou Educação
Ontem de manhã acordei bem cedo, saí de casa, apanhei o meu autocarro rumo à cidade do Porto e por lá tomei conta dos meus assuntos. Ao voltar, eis que – esperando o comboio na estação de São Bento – me deparei, num pequeno quiosque, com algumas capas de jornal. Não costumo ler as notícias. É, por um lado, um defeito da minha preguiça; por outro, uma virtude do bom senso que consegui reter. Já dizia Schopenhauer: “a primeira regra para ler bons livros é não ler maus, porque o tempo é curto”. Enfim, voltando à história. Estamos no século XXI. Não faltam meios de comunicação – como aliás se via pela variedade de jornais em exposição naquele quiosque – e também não falta gente a querer comunicar. Ora, claramente, nem todos os que querem comunicar o sabem fazer. (A culpa não é dos jornais, como o prova a presença de tantos analfabetos nos púlpitos da Assembleia da República.) E, entre outros temas, fala-se muito de liberdade.
“Temos direito à liberdade”, dizem alguns. “Devemos lutar por ela”, dizem outros. Mas, como em tantos outros assuntos, cá está o homem moderno a pôr a carroça à frente dos bois. Recordo aquela célebre passagem em que Gilbert Keith Chesterton expõe o ridículo de falar em educação sem nos perguntarmos o que é a bondade: “Isto, traduzido por miúdos, significa ‘Não sabemos decidir o que é bom, mas deixem-nos dá-lo aos nossos filhos!” Aliás, na mesma passagem, umas linhas acima, Chesterton tinha dito “O homem moderno diz: ‘Deixemos estas regras arbitrárias e abracemos a liberdade!’ Isto significa, logicamente dito: ‘Não decidamos o que é bom, mas consideremos bom não o decidir.’”
Poderíamos falar desse tema tão interessante – o que é o bem? –, mas deixemos isso para outro dia. Perguntemo-nos agora, simplesmente, o que é a liberdade. Bem faziam os medievais, que, antes de começarem a falar de uma coisa, se perguntavam o que ela era. Parece-me óbvio que não poderemos falar de liberdade sem falar de vontade.
Para o homem moderno, a vontade é a faculdade de escolher. A vontade é aquilo que nos permite, diante do menu, escolher entre carne ou peixe. É aquilo que nos permite escolher um curso universitário em detrimento de outro, ou uma atividade de lazer em vez de outra. Para os homens modernos – entre os quais se situa o leitor e de cujas garras vou eu tentando escapar – a vontade é, pura e simplesmente, a capacidade de escolher entre duas ou mais opções. O contrário da liberdade seria a supressão da vontade. Seria contrário à nossa liberdade que o chefe tirasse o peixe do cardápio. Seria contra a nossa liberdade que alguém não nos permitisse caminhar por onde bem entendemos, tomar as vacinas que bem queremos, aprender as línguas e danças que desejamos.
Tudo o que nos limita a capacidade de escolha atenta contra a nossa liberdade. E assim a sociedade, os pais, os costumes, as instituições e a própria natureza são nossos opressores. Chegou Sartre a dizer que “se Deus existisse, não poderíamos ser livres”. E teria razão, se a liberdade fosse isso. Mas a liberdade não pode ser isso, ou nunca seríamos livres: quem de nós escolheu nascer? Quem escolheu ter duas pernas? Quem escolheu ter tal saúde, tal irmão, nascer em tal sítio? Maldita seria a natureza, que nos tolhe a liberdade de voar com asas! Malditos seriam os nossos pais, que nos ensinaram português e não árabe! Malditas seriam todas as pessoas sobre a face da terra, porque, de um modo ou outro, todas nos limitam a liberdade.
É claro que depois se fazem remendos e se dizem coisas como “A minha liberdade acaba onde começa a do outro”. Mas isso só me diz para não arrancar olhos a pessoas que não querem ter os seus olhos arrancados; não me diz nada sobre não ter escolhido a cor dos meus olhos, ou o tamanho das minhas orelhas. E, claro, isto não diz nada sobre o facto de que, sem família, costumes, instituições e natureza, não existiríamos… e não haveria liberdade.
Agora, eis uma das grandes vantagens do estudo das Humanidades: ouvindo e lendo o que outros proferiram há muito tempo, não precisamos de levar tão a sério as palermices que se dizem hoje em dia.
Permitam-me, então, oferecer uma alternativa – o que diziam os antigos e medievais. A vontade, para homens como Aristóteles e São Tomás de Aquino, não é, de maneira alguma, a faculdade de escolher. (Isso, diriam eles, pertence a outra faculdade – o intelecto – em particular, o intelecto prático.) O que é, então, a vontade? A vontade é a faculdade de desejar; e funciona tanto melhor quanto melhor desejar.
O que quer isto dizer? Quer dizer algo muito simples e bastante evidente, que o fumo das cidades modernas nos tende a turbar: há coisas boas e coisas más, e nós devemos desejar as boas. Aliás, dentro das boas, devemos desejar a melhor. Devemos desejar mais cuidar de alguém do que viver sozinhos. Devemos desejar mais estudar do que copiar. Devemos desejar mais ser honestos do que ladrões. Devemos, enfim, desejar mais amar do que ser amados. (Atenção! Esta seria toda uma outra conversa, mas “devemos” não significa uma imposição externa. Este “devemos” significa, somente, “se queres verdadeiramente ser homem…”. E, por isso mesmo, não se impõe. Podes não querer jogar futebol, contudo, se quiseres, não podes jogar com uma bola de golfe; podes não querer nadar, mas, se quiseres, tens que entrar na água. Enfim, se queremos ser homens e mulheres, então não vale tudo; e, se não queremos, então seremos – se formos alguma coisa – espectros ou fantasmas.)
Disse há pouco que a vontade é a faculdade de desejar. O contrário da liberdade, por conseguinte, é não desejar, ou desejar mal. Desejo mal quando desejo o mal, ou quando desejo por maus motivos, ou quando desejo de um modo mau. Se desejo usar cábulas num exame, então, assumindo que não seja de consulta, desejo uma coisa má. Não sou livre – sou totalmente dependente. Se desejo ajudar a minha avó numa tarefa, porém com a expectativa de receber algo em troca, então desejo mal. Não sou livre – sou completamente dependente. Se desejo deixar de mentir, no entanto, na primeira dificuldade recaio nesse vício, não estou livre – estou, como se vê, totalmente dependente. Dependente de quê? Se não for de mais nada, da minha fraqueza e daquilo que me dá na real gana.
Não obstante, se souber desejar bem, aí serei verdadeiramente livre, uma vez que serei verdadeiramente homem. O que é a liberdade? A liberdade, caro leitor, é a saúde da vontade. A liberdade é a vontade verdadeiramente operante. O homem é livre sempre que se deixa mover pela simples bondade das coisas. As coisas não se opõem à liberdade; pelo contrário, são o garante da liberdade, já que são as coisas que a vontade pode desejar. O que seria um homem sem coisas para desejar? Como poderia sequer escolher?
Daí que a possibilidade de uma verdadeira liberdade não esteja na anarquia, que pretende prefigurar a ausência última e total de impedimentos (ainda aí o homem não seria livre de respirar debaixo de lava). A possibilidade e a raíz da verdadeira liberdade está, isso sim, numa educação sólida e verdadeira, numa aprendizagem e conhecimento de um mundo como ele é e não como alguém gostaria que ele fosse. Isto porque, apenas conhecendo o bem, o podemos desejar.
De facto, é como disse Chesterton. Primeiro deverá vir a pergunta acerca do bem, para depois podermos descobrir uma verdadeira educação. Hoje, porém, ninguém a quer colocar. Quanto aos modernos, divertem-se a desenhar o símbolo da anarquia nas casas de banho públicas, onde ninguém ousa desafiar a sua pseudoliberdade. Para o bem e a verdadeira liberdade, graças a Deus, temos sábios de outrora.
Artigo da autoria de Gonçalo Costa