Opinião
Atlanta: neurose e negritude
Atlanta e o afro-surrealismo
Atlanta (2016) pode ser considerada um clássico instantâneo. A série, que saiu da mente inquietante e perturbadora de Donald Glover e do olhar crítico de Hiro Murai, escancara a dinâmica racial estadunidense e trabalha, de diversas perspetivas, a negritude como um todo. Assim, a obra é a principal representante do afro-surrealismo na contemporaneidade e promete influenciar e inspirar várias outras obras dessa corrente artística.
O afro-surrealismo, que não teve uma data de nascimento exata, mas que começou a ganhar visibilidade no fim do século XX, é um movimento artístico diaspórico que tem manifestações em todos os lugares onde houve um grande fluxo de migração africana, seja ela compulsiva (tráfico negreiro durante o período colonialista) ou não (migrações pós-Guerras Mundiais). É um dos expoentes do movimento Négritude, que, no começo do século XX, buscou incorporar as raízes africanas nas artes plásticas e visuais. No caso específico do afro-surrealismo, como já indica o nome, as obras apresentam um caráter surreal ao incorporar elementos afro (sejam referentes à África ou à comunidade afrodescendente do país, ou região) no contexto contemporâneo, representando assim a dinâmica étnico-racial de forma a transcender a racionalidade ocidental.
O afro-surrealismo é muito presente no ambiente urbano, principalmente no grafite. Basquiat, por exemplo, foi um dos primeiros artistas de grande proporção a ganhar fama com a sua obra afro-surrealista. Contudo, durante a segunda década do século XXI, cresceu muito no âmbito audiovisual. Filmes como Sorry to Bother You (2018), Get Out (2017) e Run (2020), além de videoclipes de músicas como This is America (2020), Point And Kill (2021), Bubblin (2018) e Never Catch Me (2014), são tipicamente surreais, mas o elemento que permite a transcendência da realidade é, escancaradamente, a negritude. Atlanta, por sua vez, é a obra audiovisual de maior relevância do afro-surrealismo porque apresenta uma gama enorme de elementos afro-surreais, além de possuir, no seu elenco e na produção, grande parte dos artistas e atores que participam do cenário afro-surreal. Donald Glover, por exemplo, é o cantor de This Is America. Hiro Murai dirigiu tanto o videoclipe dessa música quanto Never Catch Me. Lakeith Stanfield atua em Get Out e estrela Sorry to Bother You. Vemos, então, uma reunião de grandes nomes do afro-surrealismo contemporâneo numa só obra.
O anti-edipianismo de Deleuze e Guattari
Contemporaneamente ao afro-surrealismo, surgiu a esquizoanálise, desenvolvida por Félix Guattari e Gilles Deleuze e explicada a fundo em O Anti-Édipo. Embora o afro-surrealismo faça jus às artes, principalmente num contexto de negritude, e a esquizoanálise faça uma crítica à psicanálise, há uma convergência em ambos quanto à vida contemporânea ocidental: ela é corrompida pelo capitalismo. Essa corrupção, no afro-surrealismo, é representada através do choque cultural entre a cultura afro e os mecanismos de dominação da cultura capitalista, enquanto na esquizoanálise ela é representada pela edipianização, intrinsecamente capitalista, do pensamento e comportamento contemporâneo.
A esquizoanálise pressupõe que o complexo de Édipo valida a lógica destrutiva capitalista ao objetivar o pensamento humano. Deleuze e Guattari, por serem pós-estruturalistas (embora não gostassem de ser designados como tal), sempre defenderam a pluralidade, o múltiplo. Eles nunca negaram, na sua obra, a existência de um complexo de Édipo, pelo contrário: sempre defenderam a sua existência. Contudo, negam que a sua existência seja, necessariamente, natural, mas sim instaurada – as coisas não se resumem a papai e mamãe, a “papai foi trabalhar e mamãe ficou a limpar a casa”, ou a “quero matar papai para transar com mamãe”. Mas essa lógica, de papai chefe de casa e mamãe cuidadora, sempre foi muito conveniente à racionalidade capitalista. A denúncia que O Anti-Édipo faz de que a psicanálise, até hoje utilizada de forma religiosa e incontestada para justificar o pensamento ocidental, pré-estabelece valores de gênero e afirma que são naturais do humano, é revolucionária, embora ainda hoje seja ignorada por cuspir na base do pedestal psicanalítico freudiano.
Por isso, O Anti-Édipo não é considerado tanto uma obra sobre a psicanálise quanto é considerado uma obra sobre a cultura ocidental capitalista contemporânea como um todo. Não critica o complexo de Édipo como um complexo sexual, mas como uma falácia teórica que legitima a lógica capitalista e a criação de dicotomias que permitem o seu funcionamento. Michel Foucault, por exemplo, diz que O Anti-Édipo é “o primeiro livro de ética que foi escrito na França há muito tempo”. O vocabulário é tipicamente psicanalítico, principalmente ao fazer referências patológicas com termos como esquizofrenia e neurose, mas a intenção é falar muito mais do que sobre psicanálise. Inclusive, em Mil Platôs, também de Deleuze e Guattari, há uma expansão ainda maior na interação entre capitalismo e esquizofrenia. Mas, afinal, por que esquizofrenia e neurose?
A esquizofrenia foi a forma com a qual Deleuze e Guattari encontraram de contestar a forma de pensar edipiana. Os pacientes esquizofrénicos que Freud analisou não seguiam a racionalidade dos seus estudos psicanalíticos. Não se tratava, contudo, de uma exceção, mas sim de uma parcela resistente à implementação artificial do complexo de Édipo, uma resistência natural a uma racionalidade agressiva. A esquizofrenia, assim, é uma forma de combater a neurose edipiana; neurose sendo a manifestação do estabelecimento compulsivo de um complexo de Édipo e a consequente objetivação da mente humana.
Essa objetivação é feita a partir da inibição daquilo que os filósofos chamam de máquinas desejantes. Para eles, o inconsciente não repete o que lhe foi exibido, ele produz. Não seguimos um livro de regras para pensar, nós pensamos de forma autónoma, vemos, interagimos, criamos. A lógica edipiana objetiva o pensamento, classifica toda ação como um impulso sexual. Mas um impulso é um reflexo, é um instinto. Não produz, apenas repete, responde. Por isso, Deleuze e Guattari defendem que o inconsciente é constituído por máquinas desejantes – temos desejos, não necessariamente todos sexuais, e nós os produzimos (por isso a terminologia “máquina”), não os repetimos por lei. A neurose é a inibição das máquinas, a esquizofrenia sua liberação.
Assim, dois distúrbios mentais adquiriram conceitos que extrapolam a psicanálise: ser esquizofrénico é contestar a edipianização, é criar, é se libertar, enquanto ser neurótico é aceitar a edipianização, a repetição e objetivação do pensamento.
Neurose e negritude em Atlanta
Atlanta, enfim, é uma obra que aplica, mesmo que involuntariamente, os conceitos de esquizofrenia e neurose de forma perfeita na sociedade (afro-)americana. Isso porque o complexo edipiano, tipicamente utilizado para explicar a relação papai-mamãe-eu, resulta também na criação de uma racionalidade branco-preto-eu, ou um rico-pobre-eu. O maior exemplo disso é o monólogo presente no primeiro episódio da terceira temporada:
“O branco não é algo real, né? Não há uma base científica para ele. As pessoas só… se tornam brancas. É social. Branco é onde você está, é quando você está. Os armênios são brancos pra caramba, até não serem. […] Com sangue e dinheiro o suficiente, qualquer um é branco. Sempre foi desse jeito. Mas a coisa sobre ser branco é que isso te cega. É fácil ver o homem negro como amaldiçoado porque você se diferenciou dele, mas você não sabe que é tão escravizado quanto ele. Branquidão fria. Você está hipotérmico. Você perde a lógica. Você vê o sangue e pensa que outra pessoa está sangrando. Todos estão a gritar para que você desligue a máquina, mas você não os escuta. Você não consegue nem se escutar a dizer ‘também somos amaldiçoados'”
Esse monólogo, presente em Three Slaps (S1E3) é carregado de uma lógica esquizofrénica. Reconhece o estado neurótico em que o homem se encontra no contexto capitalista e expõe a falácia edipiana de pré-estabelecer fenômenos culturais como fenômenos psicológicos. Assim como a relação papai-mamãe é um construto social, a relação branco-preto também é. É pura e intrinsecamente social. É uma dicotomia que só existe para manter um status quo capitalista, para manter, nos Estados Unidos, uma indústria que lucra com o ódio (e.g KKK), com a segregação (e.g guetificação geográfica e de mercado, como com o movimento crescente de apoiar “black businesses”), ou com uma representação de um desejo utópico de dessegregação (e.g publicidades da Benetton). A mesma caraterística edipiana de construção de papéis sociais se encontra na dinâmica racial, e assim a edipianização transcende a dinâmica sexual e atinge (ou cria!) outros segmentos psicossociais.
Podemos nos aprofundar mais nisso ao analisar outros dois episódios da terceira temporada: The Big Payback (S3E4) e Rich Wigga, Poor Wigga (S3E9). Vale notar que nenhum dos dois, assim como Three Slaps, é canônico, ou seja, pode ser assistido de forma independente e em qualquer ordem, sem afetar a trama principal (que já é relativamente episódica por si só).
Em The Big Payback, um homem (negro) processa outro homem (branco) por esse ser descendente de uma família que era dona de escravos, escravos os quais eram ancestrais do homem negro. Isso estabelece um precedente que gera um caos na dinâmica racial estadunidense. O personagem principal, Marshall Johnson, um trabalhador normal de escritório, se endivida por ser descendente de uma família que possuía escravos. Assim, perde o emprego e começa a trabalhar num restaurante, com uma parcela do seu salário destinada à quitação da sua dívida. Ao fim do episódio, vê-se brancos a trabalhar no restaurante de luxo, e negros a almoçar nele. Ou seja, a dinâmica social baseada na cor (branco = rico, negro = pobre) é invertida, mas o princípio de dinâmica racial (cor/etnia = rica, cor/etnia oposta = pobre) é o mesmo. O que o episódio mostra é que a dicotomia branco-negro não é predefinida, é puramente social. Uma inversão nos valores não mudaria a dinâmica racial, muito menos a dinâmica de classes estadunidense: o buraco é mais profundo.
Essa edipianização do pensamento, contudo, não está presente apenas na dinâmica racial branco-negro. Ela está presente também na própria negritude. Em Rich Wigga, Poor Wigga, um liceu é comprado por um negro, que começa a entrevistar os alunos para receberem bolsas integrais e ingressar na faculdade. Contudo, apenas os alunos negros ganham bolsas integrais. O personagem principal, Aaron, é branco e tem uma figura paterna negra, mas não consegue provar ser negro, embora tenha sido entrevistado e tratado da mesma forma que todos os outros. Por não conseguir a bolsa, ele decide queimar a escola durante a noite. Ao chegar ao liceu, ele depara-se com outro aluno. Esse, com o tom de pele mais escuro dentre todos os personagens do episódio, também quer queimar a escola por não ter sido considerado negro. O personagem principal discorre então sobre como compreende o facto de o nigeriano não ter sido considerado negro: ele “tem toda uma cultura para se basear, sabe de onde é, pode pesquisar sobre a sua linhagem e tem um país ao qual pode voltar e chamar de casa”.
Aqui, temos uma abordagem muito mais complexa da negritude. Ser negro agora não é algo social, uma oposição a ser branco. Ser negro agora é uma oposição a ter uma identidade de facto. Não porque a cultura afro-americana tem menos importância que qualquer outra, mas porque a formação dessa implica a destruição de uma cultura africana original. Ser negro é ser descendente de alguém que foi tirado da sua casa, de alguém que foi escravizado, de alguém que foi marginalizado. Ser negro é carregar o peso de ser descendente de alguém que teve a sua cultura despida de si, é carregar o peso de criar, desenvolver e manter uma nova identidade para si, para seu próximo e para os que vêm a seguir. É um fardo, e a escravidão um fantasma, uma assombração.
Assim, como pode o afro-americano ter uma identidade consolidada, se grande parte da sua identidade é, essencialmente, ter sido despido de uma identidade em primeiro lugar? Por isso, neste episódio, há um questionamento quanto ao que é ser negro: uma mera oposição ao branco reforçada pelos mecanismos capitalistas, ou uma pseudoidentidade em constante processo de (re)formulação, mas que é limitada pelas forças repressoras (cultura ocidental)?
O episódio responde à pergunta ao afirmar a multiplicidade da negritude. O estudante nigeriano é alvejado por um policial. O novo dono do liceu chega ao local e diz ao garoto: “ser alvejado pela polícia é a coisa mais negra que alguém pode fazer”, e garante-lhe a bolsa integral e todos os cuidados médicos necessários. Ou seja, ser negro é parte dos dois: a oposição ao branco, hoje, já converge com a pseudoidentidade construída ao longo dos últimos séculos. O aluno nigeriano, mesmo podendo não ser considerado negro dentro da comunidade afro-americana, ainda é negro a partir de uma racionalidade ocidental judaico-cristã, branca. Ser negro não é necessariamente ter uma pseudoidentidade; pode ser também sofrer com as consequências da pseudoidentidade alheia.
Assim, ambos os episódios evidenciam o estado neurótico no panorama racial estadunidense. Ao questionar a essência da negritude, revelam que ela também passa por processos repetitivos e dicotomias que prejudicam a afirmação de uma identidade negra nos Estados Unidos. Atlanta, por sua vez, se mostra extremamente esquizofrénica: denuncia constantemente a neurose social de forma criativa ao transcender a racionalidade ocidental por meio do surrealismo presente nos episódios. Contudo, seus personagens encontram-se no meio-termo.
Esquizofrenia autista e conclusão
Deleuze e Guattari observaram que grande parte do problema com a neurose é que ela, por mais que possa ser identificada como um problema real e que deva ser enfrentada, é extremamente difícil de combater. Por mais que a racionalidade edipiana, repetitiva e capitalista, possa ser combatida, é difícil sair do ciclo repetitivo. Em L’Île Déserte et Autres Textes (pág. 334), Deleuze chama isso de um “rompimento e um desmoronamento”:
“Um rompimento e um desmoronamento. Eu me lembro de uma carta de Van Gogh. ‘Devemos minar o muro’. Exceto que derrubar o muro é muito, muito difícil, e se o fizermos brutalmente, nos machucamos, caímos, desabamos. Van Gogh adicionou também que ‘devemos atravessar […] lentamente e com paciência’. Temos então o rompimento e o possível desmoronamento. [Karl] Jaspers, quando fala do processo esquizofrénico, releva a coexistência de dois elementos: uma espécie de intrusão, a chegada de algo que não há sequer expressão, algo de formidável e que o é a tal ponto que é difícil de dizer, tão reprimido em nossas sociedades que há o risco de causar – e aqui está o segundo elemento – o desmoronamento. Nós encontramos aí o esquizofrénico autista, o tipo que não se mexe, que pode ficar imóvel durante anos. […] Van Gogh, [Gérard de] Nerval – e quantos outros poderíamos citar! – derrubaram o muro do significante, o muro do Papai-Mamãe, estão muito além disso, e nos falam com uma voz que é de nosso futuro. Mas o segundo elemento continua igualmente presente neste processo, e é esse o risco do desmoronamento. O rompimento, o dano que pode causar com o desmoronamento é algo que a pessoa não tem o direito de ignorar.”
Ou seja, sempre haverá uma consequência para aqueles que buscam combater a neurose. Suponhamos, já que o texto é sobre Atlanta, que um estadunidense busque combater a neurose, os mecanismos de repetição capitalistas na sociedade. Ele seria imediatamente rotulado como um comunista, como um inimigo do Sonho Americano™️. Ora, o mesmo aconteceria com um afro-americano, caso denunciasse as consequências negativas da guetificação na sociedade estadunidense. Muitos negros, inclusive, são apedrejados por muito menos. O próprio Donald Glover, por exemplo, é criticado por ter uma parceira branca e ter tido filhos com ela, como se isso desqualificasse a sua negritude. Por isso, a neurose deve ser combatida de forma lenta, subtil. Deve ser observada, mas se houver uma urgência na denúncia, os mecanismos capitalistas incorporam-no na sua cultura repetitiva. Também em L’Île Déserte et Autres Textes (pág. 333), Guattari tem uma fala muito interessante quanto a isso:
“[…] Tudo que escapa à produção das máquinas desejantes é sempre reconduzido a sínteses limitativas, exclusivas, com um retorno constante a categorias dualistas, com uma separação constante dos planos.”
É exatamente isso que acontece com os personagens de Atlanta. Vivendo nos subúrbios de Atlanta, os personagens vivem a negritude. Eles sabem que há um aspeto neurótico nela, eles sabem que há algo de muito errado no panorama sociorracial estadunidense, mas também sabem que se chegarem a questioná-lo, ou serão punidos, ou o combate será incorporado e normativizado. Podemos aqui evocar diversos episódios, para além dos já citados no texto, focados especialmente nesta dupla “punição/normativização” como chave da neurose na identidade (afro-)americana:
- Streets on Lock (S1E2): Representação da dinâmica racial no ambiente carcerário;
- B.A.N. (S1E7): Representação da construção de estigmas raciais, sociais e de gênero por meio de um excerto de programação de um canal televisivo afro-americano;
- Juneteenth (S1E9): Exotização da cultura africana original em detrimento da cultura afro-americana;
- Teddy Perkins (S2E6): ”Branqueamento” da identidade por mecanismos macrossociais;
- FUBU (S2E10): Representação do ambiente escolar tóxico nos subúrbios por meio da afirmação social;
- White Fashion (S3E6): Transformação de questões raciais, como racismo e identidade, em mecanismos de lucro;
- Born 2 Die (S4E3): Reafirmação de membros da indústria musical baseada na configuração sociorracial tradicional;
- The Goof Who Sat By the Door (S4E8): Desvalorização da cultura afro-americana no âmbito da produção cultural.
Todos os episódios acima fazem questão de mostrar que todos os personagens centrais à trama estão cientes da tensão racial e social que constitui a negritude. Sabem que a dinâmica racial estadunidense não é orgânica, sabem que é regulada pelo dinheiro. Sabem também que não podem fazer nada. São autistas, esquizofrénicos rotulados. Veem através do muro, mas ficam parados, porque, de uma forma ou de outra sabem que se tentarem passar pelo buraco, o muro irá desmoronar neles.
Darius é o personagem que mais evidencia esse autismo, essa visão através do muro. Constantemente traz discursos que contestam a racionalidade ocidental e relativizam a racionalidade como um todo, enquanto os outros personagens questionam a racionalidade ocidental, mas a aceitam como soberana. Contudo, Darius, além de se ver preso nos mesmos ciclos repetitivos que os seus amigos, foge da racionalidade ocidental sem se reafirmar como construtor de uma racionalidade autônoma, que é justamente o que faz o esquizofrénico. Mas Darius, justamente no último episódio (ou, talvez, durante toda a série? Os sonhos de Darius levam o espetador a questionar se a série toda não é fruto dos seus sonhos), passa a tecer a sua própria racionalidade, quebra o muro, mesmo sabendo que há o risco de se machucar. Curiosamente, neste episódio, escuta a seguinte frase de uma mulher misteriosa:
“Acho que, por muito tempo eu estava tentando ver este mundo como uma batalha, e em certos pontos ele é. Mas eu também sou parte desse mundo e eu posso dançar nele como eu quiser. Na verdade, faço questão de dançar.”
É justamente assim, dançando, que Atlanta quer nos ver, pois é esse seu modus operandi. Não é apenas surrealista como Twin Peaks (1990) ou racialmente sensível como La Haine (1995). É o melhor dos dois mundos. Tece uma nova racionalidade, traça novos caminhos pelos quais podemos nos guiar para superar a neurose ocidental, para dançar neste mundo cuja única opção que nos deram foi a de nascer nele.
Artigo da autoria de Olavo de Freitas