Cultura
Mal Viver / Viver Mal, díptico de João Canijo
O díptico é composto pelos filmes “Mal Viver” e “Viver Mal”. “Mal Viver”, vencedor do Urso de Prata para Prémio do Júri, é centrado na história da família que gere um Hotel em Ofir. “Viver Mal”, selecionado na Categoria Encontros do Festival de Berlim, conta as histórias dos hóspedes. Além dos dois filmes partilharem o mesmo espaço, ocorrem no mesmo tempo e estão ligados de várias maneiras.
Após o sucesso em Berlim, Montevideo e Las Palmas, o díptico chegou ao mercado português com as antestreias na Competição Nacional do IndieLisboa e no Batalha Centro de Cinema, no Porto. Os filmes foram exibidos por mais de 20 cinemas por todo o país e atualmente encontram-se na 8ª semana de exibição. Segundo os dados disponibilizados pelo ICA, “Mal Viver” lidera o Ranking dos filmes nacionais estreados em 2023 contando com mais de 13 mil espectadores admitidos, enquanto “Viver Mal” ocupa o 4º lugar com mais de 8 mil espectadores.
A produtora do filme, Midas Filmes, afirma que o filme já foi visto por quase 20 mil espectadores, contabilizando os números do ICA em conjunto com as “antestreias em Lisboa e no Porto e as muitas sessões em auditórios municipais e cineclubes ainda não contabilizadas”.
O realizador (João Canijo) e a diretora de fotografia (Leonor Teles) têm marcado presença em sessões especiais e nas conversas com a audiência. No Porto, os filmes encheram as salas do Cinema da Batalha e do Cinema da Trindade, onde vários espectadores deram os parabéns pelos filmes e distinções, assim como confessaram sentir uma ligação pessoal com a temática e as histórias retratadas.
A Ideia do filme
Os filmes surgiram da ideia de ansiedade de ser mãe e “como a ansiedade pode impedir de viver e impedir de amar”, explica o realizador na sessão de 13 de maio no Cinema da Trindade. As mães retratadas “embora sejam mães perfeitas formalmente, depois não conseguem ser mães afetuosas de uma maneira genuína”.
Mal Viver é baseado na “Sonata de Outono” de Ingmar Bergman. O enredo vai-se desenvolvendo num hotel, visto que a família estaria dependente do hotel para sobreviver, e é centrado nas personagens da avó Sara (Rita Blanco), mãe Piedade (Anabela Moreira) e a filha Salomé (Madalena Almeida). O facto de trabalharem no hotel foi um pretexto para ficarem presas no mesmo espaço. “A partir do momento em que o hotel podia ter clientes, surgiu a ideia do segundo filme”, adianta o realizador.
O segundo filme, já centrado nos hóspedes, resulta da junção de três peças de August Strindberg que, apesar de serem do século XIX, se mantêm bastante atuais: “Brincar com o Fogo” (1892), “O Pelicano” (1907) e “Amor de Mãe” (1892). Estas peças foram adaptadas à nossa realidade atual e ao contexto do filme. A primeira história é a relação da influencer Camila (Filipa Areosa) com o fotógrafo Jaime (Nuno Lopes). A segunda história envolve Elisa (Leonor Silveira) e a relação com a filha Graça (Lia Carvalho) e o seu genro Alex (Rafael Morais). A terceira e última história retrata Judite (Beatriz Batarda), que toma as decisões pela filha Júlia (Leonor Vasconcelos), nomeadamente sobre a relação da filha com Alice (Carolina Amaral).
A relação entre os dois filmes foi trabalhada de forma minuciosa, “de tricô”, como descreve o realizador. Foi um processo de dividir e juntar várias histórias que espelham a realidade, e sobre as quais Canijo pede que cada um faça a sua própria interpretação.
O Hotel
O realizador, em conversa com o público, confessa considerar o Hotel uma personagem. Tudo foi feito em sua função: “O hotel já existia na minha cabeça antes de eu o ter visto, porque o hotel é uma memória de infância”. Esta ligação pessoal com o realizador remonta aos anos 60, quando lá ia aos “fins de semana para passar o dia na piscina de Ofir. É uma história muito antiga”, revelando ainda que esse foi o último hotel visto pela produção durante a procura das localizações, devido ao receio de não se encontrar como nas recordações de Canijo. O realizador defende que a viagem no tempo foi possível graças ao atual dono do hotel, filho do proprietário original que mandou construir o mesmo, que manteve o legado e a memória do pai “como uma jóia preciosa”. Brinca ainda, acrescentando que “o hotel não é tão decadente como aparece no filme. É muito mais funcional”.
O hotel também foi importante uma vez que, três dias após iniciar as rodagens, surge o 2º confinamento. Num tom de brincadeira, o realizador explica que isto foi bom para o filme pois encontravam-se “sem hipótese de fuga ou de desconcentração”.
A Parceria com Leonor Teles
João Canijo contou também que a parceria criativa com Leonor Teles foi a primeira parceria artística real que alguma vez teve, afirmando Leonor foi mais do que uma executante que se limitou a iluminar as ideias do realizador. A fotografia com “a minha Leonor” foi “imprescindível para conseguir subir um degrau (…) porque ela obrigava-me a não facilitar”. Este encontro foi descrito como o de duas almas gémeas.
As “cenas espelho” – termo utilizado durante as conversas que se seguiam aos filmes – como a cena do jantar, demonstram todas as personagens presentes, no mesmo espaço e em tempo real. Cruzam-se as histórias dos hóspedes de “Viver Mal” e a família de “Mal Viver”. A sobreposição de diálogos é utilizada pelo realizador para evitar a ilustração. Procura que a audiência se distraia, mostrando que não estão sozinhos no mundo, e que possa escolher o que querem ouvir, permitindo assim que se construa “um mundo paralelo àquele que está a ser visto”, fora do ecrã. Desta maneira, dá uma dimensão maior ao que se vê dentro do ecrã, e abre as portas da imaginação dos espectadores.
Estes fenómenos complexos de imagens conseguem criar na perfeição o efeito pretendido pelo realizador. A recusa da ilustração e o convite para diferentes interpretações são características importantes da obra de Canijo. Uma atriz compara-o com a ação de caminhar ao longo de um corredor de hotel, em que se ouvem as conversas provenientes dos vários quartos: a curiosidade que se sente ao ver uma porta entreaberta e o não conseguir deixar de ouvir o que se passa lá dentro, revela uma certa perturbação.
O Método de trabalho com o elenco
O método utilizado por Canijo com as suas atrizes, para a construção de personagens, é um fator singular do seu trabalho. A procura pelo realismo social português, normalmente obriga a estágios nas profissões que vão desempenhar, mas, neste filme, a pesquisa deu-se por meio de um trabalho mais interior. “O procurar dentro delas próprias” com algumas pistas históricas e psico-analíticas, funde-se no restante processo com ensaios e improvisações que são gravados, transcritos e selecionados pelo realizador, de modo a que os diálogos sejam criados pelas atrizes, mas manipulados por Canijo.
O elenco regular das obras de Canijo teve novas adições, nomeadamente “as miudinhas” (expressão que o realizador usa para mencionar carinhosamente Madalena Almeida, Leonor Vasconcelos e Carolina Amaral) e Leonor Silveira.
“A família vai crescendo, como é normal nas famílias”, acrescentando ainda que são “sempre mulheres” em tom de brincadeira, ao explicar que não adicionou nenhum ator à sua “companhia”.
Escrito por Bárbara Pedrosa
Fotografia por Bárbara Pedrosa