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Cultura

Histórias da Montanha: RTP1 volta a singrar com adaptação de obras de Miguel Torga

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Imagem: RTP

A RTP1 não perde tempo e a arte de bem suceder vai de vento em popa. Depois de êxitos como “Cuba Libre”, “Pôr do Sol” e “O Crime do Padre Amaro”, o canal generalista encontrou um novo mote com os contos de Miguel Torga. Com uma ligeira diferença do título, a minissérie “Histórias da Montanha” presenteia os espectadores com o panorama rural de Portugal nos anos 40.

 

Miguel Torga, pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, foi um dos escritores portugueses mais proeminentes do século passado. Natural de Sabrosa, o filho amado de Trás-os-Montes fez questão de eternizar as suas raízes em livros. Para além do caráter humilde e pitoresco das suas obras, a sapiência habitual do autor ensinou o inconformismo a toda uma nação – 

“De nenhum fruto queiras só metade”. 

Desde poemas a peças de teatro, Miguel Torga mostrou que a sua verdadeira especialidade reside na área dos contos. “Contos da Montanha” e “Novos Contos da Montanha” foram recentemente adaptados na minissérie “Histórias da Montanha”, que honra o seu legado.

Durante o passado mês de setembro, a RTP1 exibiu este projeto realizado por Luís Galvão Teles. Dos vários contos que integram a dupla de livros, apenas cinco foram adaptados – “A Maria Lionça”, “O Leproso”, “O Alma Grande”, “A Paga” e “Mariana”. Os cinco episódios foram gravados em terreno transmontano, nos concelhos de Montalegre e Boticas, exibindo paisagens campestres, casas modestas e a precariedade das populações rurais sob o comando de António Salazar.

 

Uma viagem por “Histórias da Montanha”

O primeiro episódio conta a história de Maria Lionça, mulher respeitada e amada pelos seus conterrâneos. De riso fácil na juventude, a protagonista converte-se, mais tarde, numa pessoa triste e solitária. A fuga do marido para o Brasil, o seu retorno e morte e, como derradeiro desastre, o falecimento do próprio filho, acabaram na total decadência de Maria. Todo o seu percurso se torna particularmente interessante, especialmente a dor que a assolou, tendo sido o seu filho, sinónimo de alento, que lhe deu forças para continuar. A inserção da canção infantil “Naquela Linda Manhã”, nesta parte da história, foi um momento muito bem conseguido, no qual Maria Lionça aprecia a vida tal como é, ainda que condenada à desventura.

O conto mais macabro ganha vida no capítulo seguinte. Neste segundo episódio, é contada a história de Julião, um jovem aldeão que padece de lepra, sendo no reflexo da água que observa um futuro sem esperança. Com a expressão “leproso dos infernos” gravada na mente, o isolamento parece-lhe o mais sensato: sem cura e amparo, rende-se à mendicidade. Surpreendentemente, o seu último suspiro não foi causado pela doença, mas sim pelo bem comum dos seus conterrâneos. A falta de resposta médica e a vingança, expuseram a descompaixão humana em prol da segurança da aldeia. No final, o narrador confidencia que Julião “nunca esperara uma morte assim”, cercado e deixado para queimar.

A eutanásia é outro tema brilhantemente abordado por Miguel Torga. Outrora sem morte medicamente assistida, os denominados “abafadores” exerciam o peculiar ofício de sufocar aqueles que se encontravam enfermos, com dor agonizante. O Alma Grande é, assim, o protagonista do terceiro episódio, sendo apanhado de surpresa quando um dos seus trabalhos não corre como esperado. Para ele, o carma e a retaliação atuam de forma implacável e “possantes, inexoráveis, as tenazes iam apertando sempre”. O Alma Grande morre, asfixiado pelo seu “paciente”: “O feitiço virou-se contra o feiticeiro” é o que nos fica deste capítulo.

Em “A Paga”, Arlindo é a vítima através da qual o autor explora o campo amoroso e religioso. Por conta da sua leviandade, é a causa da desgraça de inúmeras jovens: o talento com a concertina e o jeito sedutor garantiam-lhe namoros temporários por onde passasse – mas o seu interesse era meramente sexual. Todavia, esse modo de vida teria o seu fim. Depois de recusar casar com uma das jovens, Arlindo é friamente capado pelos irmãos da rejeitada, trazendo novamente ao de cima a sensação de vingança já sentida ao longo da série.

O último episódio é mais leve e igualmente interessante, mas peca por não ter narrador como os demais. O narrador é uma mais-valia neste projeto, na medida em que permite uma melhor conjugação entre a literatura e a televisão. “Mariana” é, no entanto, um episódio bem desenvolvido, que lança curiosidade e dúvida em torno da personagem principal. Mariana é uma mulher que vive para satisfazer as suas necessidades carnais, sem prever o número de vezes que viria a conceber. Se por um lado, parece imprudente e pouco zelosa, por outro demonstra uma grande conexão para com os seus filhos. Mariana não procura, nem irá encontrar, um homem presente na sua vida, pois

 

 “eles atuavam apenas como o vento, que traz a semente e passa”. 

 

“Histórias da Montanha” mostra a pobreza e os desaires da vida em tempos difíceis, mas exibe também a felicidade genuína com dança, cantoria e convívio. Os prados verdejantes são os cenários de eleição de todos os episódios, fazendo sobressair a beleza natural do interior português, especificamente a área transmontana. As casas de pedra também são objetos de destaque devido ao seu caráter tradicional, singelo e pouco cómodo, com lareira, mesa, quarto e pouco mais. 

O elenco faz jus a esta realidade patente nos contos de Miguel Torga. Nomes como Anabela Moreira (“Maria Lionça”) e Soraia Chaves (“Mariana”) integram este projeto e, com carreiras consolidadas, as atrizes destacaram-se nos respetivos papéis. A evolução de Maria Lionça é um dos aspetos mais significativos da série. A transição da juventude para a idade adulta é maravilhosamente bem concebida por Anabela Moreira. O semblante triste, humilde e amistoso que carrega ao longo do episódio evidencia a razão por detrás das boas relações que construiu na aldeia. 

A Mariana de Soraia Chaves foi uma aposta segura, visto que a atriz ganhou notoriedade com atuações despudoradas, elegantes e sensuais. A forma orgânica com que protagoniza o episódio de cariz marcadamente sexual, revela o imenso profissionalismo de Chaves, assim como mais um contributo para a dissipação de um dos maiores tabus existentes.

“Histórias da Montanha” encontra-se disponível na RTP Play, à semelhança de outros conteúdos nacionais como “Cuba Libre” e “O Crime do Padre Amaro”.  A minissérie “Cuba Libre”, realizada por Henrique Oliveira, estreou em setembro do ano passado. Tal como “Histórias da Montanha”, o projeto de seis episódios desenrola-se na dureza do Estado Novo. Contudo, em nada mais se equiparam. “Cuba Libre” é uma série mais robusta e complexa, que se opõe ao caráter modesto e precário de “Histórias da Montanha”. 

Por outro lado, “O Crime do Padre Amaro” apresenta mais semelhanças com “Histórias da Montanha”, sendo que ambas as séries são baseadas em obras literárias de escritores renomados. Eça de Queirós e Miguel Torga não viveram no mesmo período, mas partilharam a mesma vontade de expor questões sociais e religiosas nas suas histórias. A religião é o elo de ligação entre as duas séries – a crítica à corrupção do clero português em “O Crime do Padre Amaro” e o conforto das populações rurais proporcionado pelo divino em “Histórias da Montanha”.

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