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Opinião

Sobre os protestos violentos e as armadilhas mediáticas

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Imagem: Arquivo pessoal (Vasco Castro Pereira)

No passado dia 28 de fevereiro, aconteceu um grave ataque à nossa democracia. Luís Montenegro, presidente do PSD e candidato a primeiro-ministro, foi atingido com tinta por um ativista ambientalista. No dia 10 de março, a sede de campanha da Aliança Democrática foi também atacada.

Enquanto Montenegro e a AD se recuperam destes acontecimentos dramáticos – que, a meu ver, falharam na estratégia e no timing: à custa destes momentos de ativismo monotemático, não só vamos dar força à direita, mas também o foco em ataques de dirigentes da AD, enquanto direitos básicos, como a imigração ou o aborto, ficou comprometido – voltamos à velha discussão sobre o que é o bom e o mau ativismo, recuperando vários outros protestos, em grande parte também de movimentos sociais ambientalistas.

O que une estes vários eventos? Para além da inquietação da juventude, o facto destas ações pontuais serem alvo de enorme escrutínio mediático, que quase ofuscou as ações de luta em si mesmas. Abriram noticiários, foram alvos nos comentários de política semanais, quase sempre com direito a condenação (seria sempre de esperar, tendo em conta que o espaço de comentário político televisivo é desequilibrado a favor da direita). Enquanto se falou da tinta, até mesmo da cor da tinta, falou-se pouco ou nada daquilo que são as propostas concretas dos ativistas ou dos coletivos envolvidos nas manifestações, como a Climáximo. Da mesma forma, e recuperando momentos mais violentos dos últimos protestos pelo direito à habitação, enquanto se falou dos vidros das montras, pouco ou nada se falou dos telhados de vidro das nossas políticas de habitação, responsáveis por levarem tantos e tantas à rua.

A explicação mais óbvia para isto não é rocket science, e já foi explanada em muitos outros casos nos quais a comunicação social mainstream – em particular SIC, TVI/CNN e CM – preferiu não dar relevância a situações da vida concreta dos portugueses. É a mesma explicação, por exemplo, para se falar tanto da polémica entre João Galamba e Frederico Pinheiro e tão pouco de problemas que assolavam a vida dos portugueses nesse período de tempo, incluindo a própria gestão da TAP. É simples: a realidade concreta demonstra que as desigualdades sociais estão cada vez maiores, que a classe trabalhadora produz cada vez mais e possui cada vez menos (como demonstra um estudo de Ricardo Paes Mamede e Paulo Coimbra: em 2022, tivemos a maior transferência do trabalho para o capital de sempre) e que o modelo económico vigente 1) ao contrário do que dizem, não está a falhar, está precisamente a ser bem sucedido na preservação de privilégios das classes dominantes em todas as superestruturas sociais, e 2) é responsável não só por esta crise social e aumento das desigualdades como também por uma crise climática que nos deixa à beira de um ponto de não retorno e, até, pelos incentivos à indústria bélica e o consequente escalar da confrontação e da guerra um pouco por todo o mundo.

A imprensa privada não deixa de ter interesses privados, mais concretamente de quem a financia e é, por isso, um braço mediático do capitalismo vigente, não sendo, assim, nada conveniente que deixe passar qualquer exposição das falhas da economia de mercado. No dia em que isso acontecer, e os trabalhadores, precários e excluídos do sistema, se consciencializarem ao ponto de constituírem ação coletiva, o capitalismo está a mais um passo de cair e, com a sua queda, cai a imprensa capitalista e caem os seus donos.

Mas, desta vez, há que reparar também na forma como se fala destas ações em isolado. Exploram-nas com o propósito de demonstrar aquilo que não deve ser o ativismo.

Os manifestantes devem ser pacíficos e recatados, limitar-se a palavras de ordem e compreender o seu lugar, respeitando a hierarquia e as instituições. Em alguns casos têm, também, de ser mais velhos e de ter uma licenciatura, caso contrário são “putos mimados que não sabem nada da vida e que não respeitam os mais velhos”. Houve ainda uma projeção dos acontecimentos isolados a todo o movimento, como uma forma de demonstrar que o ativismo hoje é muito radical e extremista.

Aqui está subjacente, a meu ver, o racional menos óbvio e mais perigoso, por parte da infraestrutura e dos grupos económicos, dos poderes políticos, da cultura e dos media: a defesa acérrima de um ativismo consensualista e até, até certo ponto, organicista. A virtude do ativista, do manifestante e dos próprios coletivos, e até partidos políticos, não está na organização, no confronto ou na ação solidarística de classe (ou outro grupo consciente), mas sim na educação, no respeito pela ordem, na racionalidade e na compreensão. O bom ativista deverá calcular tudo, portar-se bem e saber negociar com os poderes, de forma a obter uma solução que deixa as duas partes satisfeitas ou, pelo menos, a obter um abraço do superior em questão e respeito nas redes sociais. As jovens ativistas pela ação climática deveriam ter tentado falar com alguma autoridade politicamente responsável e ido para casa com um “estamos atentos e muito preocupados”. Os manifestantes pela habitação devem continuar a procurar casa e contentar-se com a primeira proposta financeiramente aceitável, mesmo quando isso significar viver sem qualquer dignidade. Nunca se esqueçam de que poderia ser pior.

Este racional, sem qualquer contexto histórico ou contra-argumento, é muito facilmente aceite até pelos explorados, oprimidos ou dominados e, consequentemente, é desmobilizador. É-nos transmitido, pelos meios de comunicação social de massas, mas também desde cedo no Ensino tradicional, através de racionais, códigos linguísticos e estruturas impregnadas de hierarquização e submissão ao sistema vigente. Somos ensinados, desde cedo, a ser “resilientes”, a ter espírito “empreendedor” e a respeitar hierarquias institucionais profundamente verticais. Isto acontece na chamada socialização primária, ou seja, na nossa interação individual com o mundo material na infância, de forma mais imediata e transformadora. Somos inundados com histórias mediáticas no mesmo sentido de resiliência, empreendedorismo e meritocracia, sem uma verdadeira consciencialização transformadora em relação ao que está estabelecido. Também estão lá as forças de autoridade ao serviço deste Estado para garantir a hierarquização social que é boa, para nosso bem. Resumindo, somos, institucionalmente, coagidos a aprender para a liberdade, a aprender o que é, para quem é e como se alcança a liberdade, como sujeitos morais (publicidade: Neoliberalismo como Gestão do Sofrimento Psíquico, do Prof. Dr. Vladimir Safatle, edição portuguesa chegou em setembro).

A alternativa que a classe e grupos explorados têm, de constituir uma antítese a este pensamento da classe dominante, não pode ser muito diferente da que se tem visto. Tem de passar, inevitavelmente, pela ação coletiva solidarística, sustentada na consciência de classe e capaz de disputar lutas simbólicas nos espaços de poder. Seja com impacto direto na estrutura económica, através do poder político (e de partido), seja indiretamente, através de capitais e poderes simbólicos ou em estruturas sociais e culturais. Neste sentido, o que pode e deve ser discutido é se a abordagem seguida, de ação meramente negativa sem grande expressão ideológica, é a mais eficaz para esses fins (incluindo em termos de mobilização), mas não, nunca, sem desertar da luta.

Sei onde me posiciono politicamente, quer neste debate, quer no debate sobre as instituições: sou um social democrata clássico, trabalhista e defensor das instituições. Defendo a tomada do poder por um partido de trabalhadores, a abolição do capitalismo e a reestruturação total do modelo vigente a partir de reformas e sem negar a liberdade política para um caminho oposto apenas possível no parlamentarismo e no liberalismo político. Acredito no internacionalismo a partir da cooperação e amizade entre os povos e da cooperação entre partidos socialistas com os mesmos objetivos. Mas sejamos claros: há grupos que já não têm mais nada a perder, e o nosso papel não pode ser cortá-los ainda mais, na defesa de uma lógica organicista de sociedade. A nossa garantia, comum a todos os que acreditam numa sociedade nova, assente nos pressupostos socialistas, terá de ser a de que a classe trabalhadora e os excluídos poderão perder todas as batalhas menos a última.

Artigo da autoria de Vasco Castro Pereira