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Opinião

A Metamorfose da Identidade: Corpos Trans na Encruzilhada da Moda e da Aceitação

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Imagem de Reprodução

De todas as necessidades comportamentais inerentes ao bicho-homem, pertencer é de longe um conceito vital à estrutura social. O pertencimento é responsável por influenciar diretamente a coesão e o desenvolvimento da sociedade como um todo.

A carência desse sentimento é responsável por causar reações psicológicas ao catalisar emoções como exclusão e isolamento, cujos impactos atingem profundamente a nossa existência numa sociedade que cada vez mais se despende de seu caráter disciplinar, saltando para o status de sociedade do desempenho.

Para muitas pessoas trans, é exatamente assim que a vida social é delimitada. Essas pessoas lutam para se sentirem aceitxs e incluídxs de forma útil para o organismo da sociedade.

Nessa longa jornada rumo à aceitação, a representatividade suscitada a partir da interseção entre os corpos trans e a moda como conhecemos, abarrotam-se no mesmo palco de uma metamorfose cultural [digital] pungente onde a identidade de género segue sendo desafiada e redefinida para caber numa capa de revista.

O filósofo francês Michel Foucault, em muitas de suas reflexões acerca da relação indivíduo, corpo e sociedade, argumenta que o corpo é produto moldado pelo conjunto de normas sociais, passando a ser considerado objeto de expressão de poder e controle. Diante disso, se acatarmos essa reflexão como contexto, a ascensão da figura trans na moda contemporânea nos revela uma dinâmica complexa de resistência, mas também de apropriação.

Empoderamento. O termo “travestir”, outrora impregnado de conotações pejorativas — assim como o termo “criança viada” que eu já trouxe aqui algumas vezes —, é agora uma expressão de autenticidade e reivindicação de identidade. Judith Butler, filósofa americana, ao discutir a performatividade de género, serve de embasamento para inferirmos aqui que o ato de “se montar” não é apenas uma representação externa, mas uma construção constante da identidade. A moda, portanto, se torna um meio transversal do qual a identidade trans é articulada e reafirmada, mas também comercializada enquanto produto do capital.

No entanto, enquanto a moda emerge como uma forma de expressão e aceitação, é necessário examinar todas as implicações dessa metamorfose para que não seja reproduzida a ideologia da ‘passabilidade social’. 

Quando o corpo se tornou alvo de intervenções sociais e políticas, Foucault nos apresentou o conceito de “biopolítica”, afinal, é inegável que a apropriação das pautas de género por parte do capitalismo, acaba por colocar em evidência a existência de corpos, ao mesmo tempo que mercantiliza os indivíduos e suas subjetividades numa prateleira de individualidades disponíveis no mercado de iguais.

 

Corpo sintético

A biopolítica é um conjunto de mecanismos e procedimentos tecnológicos (saber-poder) que tem como intuito-chave sustentar e ampliar uma relação de dominação da população. Esse pensamento articula-se intimamente com a história das transformações políticas e económicas, e passa, lentamente, a fazer parte de forma intrínseca a todas as relações sociais existentes.

Assim, governar se torna mais do que simplesmente disciplinar. Isso agora é pouco. A biopolítica é o conjunto de estratégias de gestão dos viventes, mecanismos biológicos que passam a fazer parte das estratégias políticas: higiene, alimentação, sexualidade, natalidade, longevidade. Perceba, o objeto da biopolítica é envolver-se cada vez em toda a dinâmica da população: seu corpo, sua saúde, suas ideias e subjetividades, sua vida.

No contexto de pessoas trans, a sua incorporação na moda também deve ser vista como uma tentativa de controle, uma absorção da resistência em um sistema que historicamente marginalizou identidades não normativas, mas, acima de tudo, uma oportunidade para monetizar as nossas resistências.

 

Entre estigma e elegância: existir não devia ser um ato perecível

A discussão sobre a mercantilização do corpo trans na moda contemporânea nos remete aos escritos de Pierre Bourdieu. O sociólogo francês argumenta que o corpo é um campo de lutas simbólicas onde os capitais culturais e económicos se entrelaçam. A ascensão da figura trans na moda é, portanto, um território onde a aceitação cultural coexiste com a exploração comercial.

A moda contemporânea, ao abrir espaço para corpos trans, abraça a ideia de que a feminilidade não deve ser restrita a um corpo biologicamente feminino.

De novo, o termo “se montar” transcende a simples escolha de vestuário; é um ato político que desafia as normas de gênero preexistentes. Simone de Beauvoir, filósofa existencialista, afirmava que “não se nasce mulher, torna-se mulher”, destacando a construção social do feminino. Logo, o Ser feminino também carrega consigo, além de muita subjetividade, imposições sociais encarregadas de delimitar o que deve ou não ser considerado “feminino” no comportamento social.

A representação trans, por vezes, pode ser reduzida a um clichê ou até mesmo um produto de moda para agradar audiências progressistas. A perspectiva feminina que transcende a superficialidade do “vestir-se de menina” exige uma análise crítica da relação entre corpos trans e a moda contemporânea. Não esqueçamos que Beauvoir argumentava que a Mulher na sociedade sempre fora definida como um produto resultante de sua relação comparativa com o Homem, uma alteridade que permeia muitas representações culturais.

Por isso, a moda, ao abraçar a figura trans, deve evitar cair na armadilha de reproduzir padrões que reforcem hierarquias de gênero e conceitos dominantes como, por exemplo, a representação de uma beleza comercial que está sempre ligada à magreza, olhos claros e a branquitude, onde tudo que foge disso é considerado caricato ou até mesmo associado a arte transformista (drag) e até mesmo ao androginismo.

É fundamental distinguir entre uma verdadeira celebração da diversidade e uma mera exploração comercial. Afinal, a indústria da moda, mesmo com sua carga cultural social, está fortemente vinculada à lógica do consumo neoliberal desenfreado e da estigmatização de corpos ‘fora do padrão’.

 

Além da superfície, rumo à autenticidade

Atualmente, a figura trans tem ganho cada vez mais espaço no mundo. Esse fato é de suma importância e discutir isso é veemente relevante para as questões de aceitação e desmistificação da pessoa trans enquanto sujeito oculto.

Numa era em que os corpos trans emergem como protagonistas em várias narrativas culturais — filmes, séries, novelas, política e afins —, uma reflexão simbólica-sociológica torna-se indispensável. O ideal é ponderar a transversalidade dos corpos, roupas agêneros e sexualidade.

A representação trans na moda — e na indústria cultural como um todo —, é, sem dúvida, um avanço rumo à aceitação e diversidade. No entanto, é imperativo transcender a superficialidade do “se montar” e analisar as implicações mais profundas dessa transformação. A verdadeira inclusão não deve ser apenas estética; deve ser uma celebração autêntica da multiplicidade de experiências e identidades.

Nesse aspecto, destaco a modelo cearense Valentina Sampaio, a primeira mulher-trans capa da revista Vogue França, uma das mais importantes e relevantes revistas de moda do mundo, principalmente na cultura do feminino e da beleza socialmente aceitável e discutível. Valentina é filha de pescador e nascida na praia de Aquiraz, região metropolitana de Fortaleza, Ceará, BR.

 

Trans: um futuro cada vez mais diverso

A imagem de Valentina ganhando espaço no mundo da moda, sendo também a primeira trans a se tornar uma Angel no desfile da Victoria’s Secret, famosa marca de lingerie e produtos de beleza Americana, nos mostra que é possível mudar o rumo das coisas. Ocupar esse espaço é discutir corpos trans e a sua feminilidade numa perspectiva da moda, mas também da existência do Ser em si.

No ano passado, Marina Machete, de 28 anos, causou um debate intenso ao ter sido a primeira mulher transgénero a tornar-se Miss Portugal. A hospedeira de bordo representou o país no Miss Universo 2023, alcançando o top 20 do principal concurso de beleza do mundo. Uma grande vitória para um país piamente conservador e fortemente homofóbico. Gisberta Presente!

Ao abraçar corpos trans na moda, a sociedade e a indústria estão diante de uma oportunidade de desafiar normas antiquadas e construir um espaço onde a autenticidade seja a verdadeira tendência. A metamorfose cultural em curso exige uma abordagem cuidadosa, evitando as armadilhas da mercantilização e assegurando que a representação de pessoas trans na indústria cultural seja um reflexo genuíno da diversidade humana.

Pertencimento. Numa perspectiva sociológica, reconhecer e promover o pertencimento desses indivíduos é crucial para uma evolução social inclusiva e justa. Isso requer a desconstrução de normas binárias de género, bem como a criação de espaços e políticas que acolham e respeitem a diversidade de identidades. A estabilidade identitária-cultural dessas pessoas é de suma importância para a sua existência, mas isso também só pode ser possível se o Estado investir ainda mais em políticas de inclusão, além da obrigação de se injetar mais dinheiro na saúde para que estas pessoas recebam todo o suporte necessário no processo de transição. Afinal, é um direito de todo contribuinte receber cuidados específicos.

Perceba, somente assim, podemos pensar em construir uma sociedade verdadeiramente igualitária onde todos são livres para existir sem a necessidade de tanta resistência para o ser.

 

Confira o editorial Montagem, Viado!

 

Artigo da autoria de Ícaro Machado

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