Connect with us

Artigo de Opinião

A Inteligência Artificial ainda não é capaz de criar o ‘instante decisivo’ porque ele tem de existir

Published

on

O surfista Gabriel Medina das Olimpíadas de Paris 2024. A prancha também está suspensa ao lado dele, com a correia presa ao tornozelo do surfista. Uma onda em movimento e um céu nublado compõem o cenário. A fotografia de Jérôme Brouillet.
Gabriel Medina em foto icônica 'viral' — Foto: Jerome BROUILLET / AFP

As Olimpíadas provaram que a fotografia ainda se destaca como tecnologia por capturar o ‘instante decisivo’. Embora a inteligência artificial avance, transformando a maneira como enxergamos o mundo, ela não consegue reproduzir a sensibilidade e a intuição basilares para capturar a essência de um momento. O olhar humano, guiado pela experiência do sentimento, ainda é insubstituível na busca por uma representação verdadeira da realidade.

Nos despedimos ontem dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 atravessados pelo poder eminente que a fotografia exerce sobre as nossas emoções. Na era da reprodutibilidade digital (Walter Benjamin), o esporte fez manter-se viva a aura das obras fotográficas ao nos conectar aos momentos mais pungentes de sempre das olimpíadas. Isso, inteligência artificial nenhuma jamais será capaz de criar: a verdade crua capturada pelo olho humano que busca vorazmente emancipar-se da futilidade digital.

Somos uma sociedade que tem alergia de pensar, mas que se cura ao sentir-se através do outro. E a fotografia é justamente a arte documental capaz de potencializar esse nosso [auto]reconhecimento no outro: torcemos, vibramos, rimos e choramos, seja ganhando ou perdendo.

Foram 16 dias de hinos cantados em coro, locais históricos em Paris, dramas, polêmicas, muitos memes do Snoop Dogg e, claro, fotografias memoráveis. O esporte é mesmo esse movimento milenar capaz de envolver povos e faz sentir n’alma. Cada vibração, derrota ou vitória, tudo está conectado com quem nós somos. A nossa paixão é torcer pelos nossos e comemorar cada oportunidade de ser campeão.

E a fotografia, enquanto documento do ‘aqui-agora’, sempre trouxe consigo esse gostinho de memória, né? Portanto, o fotojornalismo segue presente no mundo como objeto de identidade (documento histórico) e por isso é patrimônio material dos momentos que pedem para ser inesquecíveis.

Tinta pixelada em bits: tudo que veio antes é também história

Há muito tempo que o homem nutre esse desejo de imortalizar a sua imagem. Estátuas, desenhos e pinturas são alguns dos artefatos que ilustram esse desejo numa verdade adornada, manipulada conforme os interesses da época e de seus líderes.

A fotografia surge exatamente da superação do sujeito em relação à sua imagem artesanal (pintura) a partir da descoberta da captação representativa na câmara escura e de sua fixação em outros objetos planos: a escrita com a luz (processo fotossensível). 

A fotografia ganhou notoriedade por “capturar” o momento como um corte do real, assumindo, com o passar do tempo, o seu valor documental e recebendo status de representação verdadeira e fiel do objeto.

Num breve passeio pela história da fotografia — que se entrelaça diretamente com a história da pintura — percebemos que as duas estão intimamente ligadas por apresentarem as suas raízes fincadas no desejo narcísico de manter-se na eternidade. A imagem e semelhança. Ambas se alimentaram, por anos, dessa narrativa expositiva do eu. Na verdade, seguem se alimentando até hoje — o que são as nossas redes sociais se não uma grande ideação do eu?

Quem nunca ouviu falar do romance do jovem Dorian Gray (“O retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde), que trocou sua alma pela imortalidade e beleza, aprisionando-a em um retrato feito a óleo. No romance, o quadro envelhecia com o tempo, enquanto o jovem Dorian esbanjava beleza e infinidade.

A verdade é que as pinturas demoravam meses para serem finalizadas, além de exigir muita paciência, estética e uma longa continuidade estática da pessoa a ser retratada. A fotografia chegou com uma execução muito mais rápida e carregada pela certeza de que a sua missão é uma reprodução fidedigna do real. 

Vale lembrar que o avanço tecnológico que o fazer fotográfico carregava consigo, tornou a sua aceitação um tanto conturbada. Essa tecnologia de capturar a imagem e transferi-la para outro objeto sem que se pudesse acompanhar a sua feitura (tendo todo o seu processo estritamente químico) assustou as pessoas à época. Isso porque elas acreditavam que, nesse processo desassistido, a sua alma seria aprisionada na foto. Afinal, como pode tudo acontecer como ‘mágica’?

Passado o período de sua demonização, a fotografia se consolidou finalmente como técnica de captação de imagens e foi ganhando cada vez mais espaço. Criou-se então o hábito de fotografar o cotidiano, paisagens e pessoas. 

Uma característica bem marcante da Era Vitoriana (1837-1901) foi a prática de registros fúnebres. Na época, era comum a ideia de imortalizar os entes queridos registrando fotografias dos corpos já sem vida. Sem falar nos casos onde juntavam mais de um finado para a realização desses “ensaios fotográficos”. Esse tipo de fotografia recebeu o nome de “post mortem”, ou pós-morte.

O Instante Decisivo na denúncia do Fotojornalismo

A fotografia ganha o seu real espaço na história com o fotojornalismo. Fotógrafos de guerra como Robert Capa foram responsáveis por registrar os momentos e enviar ao mundo notícias dos campos de batalha por meio de fotografias reais de horror e destruição — a promoção do sentimento patriota e da confabulação da guerra. 

O estadunidense Lewis Hine ganha notoriedade ao denunciar o trabalho infantil nas indústrias, sendo premiado por seu trabalho que serviu de alicerce para a criação de leis que impediram o trabalho infantil nas fábricas. Como se vê, a fotografia ganha força e ressignifica o papel da captação de imagem. Consolida-se como documento, mas ainda é desconsiderada como obra de arte.

Com o avanço da fotografia na modernidade, a decadência no mercado de pinturas se tornou inevitável. Os artistas então desenvolveram a fotopintura, que era a junção das técnicas por meio da coloração de fotografia que ainda era ‘relevada’ apenas em P&B. A pintura já havia perdido o seu posto de referência na representação em imagem. 

Nesse movimento, a sociedade migrava para um pensamento que se aproximava ainda mais do realismo, afastando-se da ideologia do belo fortemente ligado ao cristianismo e à pureza religiosa. Nisso, a imagem adornada pelos pintores fugia desta realidade, devido a fácil manipulação de cenários, cores, roupas e expressões. A fotografia se consolida então como um retrato fiel da realidade.

Curioso que nas Olimpíadas de Paris, o conceito idealizado pelo fotógrafo, fotojornalista e desenhista francês Henri Cartier-Bresson tenha sido fortemente apreciado nas redes sociais. As maiores fotografias dos jogos escancararam exatamente o poder visual do instante decisivo que, segundo o seu criador, acontece em uma fotografia quando elementos visuais e emocionais se unem em perfeita harmonia e expressam a essência da situação presenciada pelo fotógrafo.

Muitos fotógrafos acreditam que o objetivo principal da fotografia é registrar esse momento único e, por essa razão, o conceito “instante decisivo” é mencionado por fotógrafos do mundo inteiro em seus trabalhos.

Desafios de um agora gerado por Inteligência Artificial (IA)

Há quem diga que a fotografia vai morrer assim como a pintura deixou de ser a principal forma de representação visual de nossa sociedade contemporânea líquida e frágil. Não sei, afinal, “tudo que é sólido desmancha no ar.” 

O que se sabe é que o advento da fotografia digital alterou muitos paradigmas fotográficos. Com aparelhos cada vez menores, mais simples de manipular e que produzem registros em alta qualidade (e tendo a internet como facilitadora no fluxo das imagens, filtros e afins), a produção fotográfica se tornou algo muito mais simples e popular do que era. 

Para alguns, a fotografia começou a perder o seu valor documental na atualidade, tornando-se um objeto cuja prioridade se torna a estética a partir da manipulação e tratamento de imagem. 

O fotógrafo Silas de Paula, que foi meu professor de Teorias da Comunicação na Universidade Federal do Ceará (UFC), no Brasil, e atualmente Diretor do Museu da Imagem e do Som Chico Alburquerque (MIS), me fez repensar a fotografia a partir de suas publicações no Facebook. Silas traz uma série de novas imagens criadas por IA por meio da junção de algumas de suas fotografias e a plataforma, ou até mesmo a partir de comandos “imaginativos”. 

Nas publicações, acompanhadas de textos carregados de reflexões acerca do fazer visual na atualidade, Silas traz “novas roupagens” de suas fotografias, agora criadas a partir de geradores de imagens que usa a tecnologia para estilizar as novas imagens. Para além da apreciação visual, o fotógrafo levanta questões sobre o futuro da fotografia, questionando a arte e imagem, como no texto: como a IA comenta a solidão na velhice?

Toda futurologia é, em essência, uma manifestação do desejo humano, uma projeção das nossas esperanças e medos.”

O papel expositivo da memória fotográfica: narrativas do mundo real

Assim como o ideal dialético-expositivo deste artigo, o MIS é um espaço que coloca o Ceará no centro do diálogo entre memória e contemporaneidade, investigação artística e tecnologia. O Museu da Imagem e do Som Chico Albuquerque é um ambiente cultural efervescente, que busca ampliar o acesso aos bens culturais em sua pluralidade, em consonância com as linguagens experimentais da arte contemporânea e as possibilidades trazidas pelas novas tecnologias digitais.   

Assim sendo, a fotografia atualmente pode até ser considerada uma pintura em pixel; ou seja, é uma arte de criar imagens manipuláveis. Não que ela tenha perdido o seu valor documental — longe disso! Mas com o advento de aplicativos, programas de edição e, agora, com o uso da inteligência artificial, a fotografia vê o seu papel de “produto da realidade” em declínio.

Talvez, todas essas técnicas que envolvem o fazer fotográfico na contemporaneidade e a condição da fotografia como um objeto replicável e sem exclusividade são justamente o que interfere no seu status de arte de representar o real.

Fernando Oliveira, professora de fotojornalismo e a fotógrafa por trás de projetos incríveis como Mulheres Líderes no Sertão do Ceará (2007), Sta. Terezinha: o morro de uma cidade (2009) e Sereias (2016), disse-me sempre em suas aulas que a imagem “nasce na nossa cabeça” antes de ser capturada e escrita enquanto fotografia.

Revisitando tal afirmação — e confrontando-a com o tempo e espaço do hoje —, essa reflexão abre precedentes para uma ideia ainda maior: seria essa uma definição capaz de substituir a mente humana por máquinas ao propor que comandos são capazes de criar obras arte?

Quer saber mais sobre imagem, memória e fotografia? Indico a leitura do livro “A obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica” (Walter Benjamin). Este livro apresenta um panorama mais aprofundado sobre a temática proposta.

 

Artigo da autoria de Ícaro Machado

Continue Reading
Click to comment

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *