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Crónica

Elástico é coisa de menina?

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lustração minimalista de duas cadeiras conectadas por um elástico esticado, sobre um fundo amarelo. A cadeira à direita é alta e decorada, enquanto a da esquerda é mais baixa. A cena está disposta em um ambiente vazio com paredes e chão delineados.
Texto originalmente publicado no livro de crónicas Criança Viada (2021) | Ilustração: Kd Carlota

Ocupar é inquietar. No domingo, conversando com o meu amigo Circe (o feiticeiro) que, vez por outra, ilustra os meus textos para o Jup; falamos sobre infâncias, brincadeiras e memórias afetivas enquanto cozinhávamos, e descobri que o ‘elástico’ nos é uma diversão em comum.

Há tempos qu’eu queria partilhar essa história com vocês — ela foi originalmente publicada no meu livro de crónicas, Criança Viada (2021) — e agora está aqui para vocês reencontrarem-se com essa brincadeira.

Elástico é coisa de menina?

É uma pergunta que eu sempre me fazia quando criança. Quando eu brincava, tinha de sempre ouvir os mais velhos dizerem: “menino, isso é coisa de menina”, em reprovação. E confesso: não sabia o porquê. Sempre brinquei com meninas. Na verdade, sempre tive muitas amigas. Encaixava-me mais. As brincadeiras eram mais, digamos, elaboradas. Geralmente refletiam o cotidiano de casa. Casinha de boneca, Barbie, escolinha…

Na verdade, as brincadeiras de menina eram mais — hoje percebo  intensas. Prisionais, talvez. Eram brincadeiras que colocavam as meninas em um lugar de mulher adulta. Meio que as preparavam para assumir o seu cargo de dona de casa. Sei lá. E isso, de certa maneira, era-me mais interessante do que correr feito um tolo atrás de uma bola. Atividades de choques corporais, de luta, isso não me agradava. Não fazia muito meu tipo. Agora, quando se tratava de jogos em grupo, sim! As brincadeiras em grupo me introduziriam em uma espécie de mundo das crianças. E acredite, éramos cruéis também.

Na infância, uma de minhas brincadeiras favoritas era pular elástico. Lembra? Dentro, fora, dentro, pisa, sai, rsrsrsrsLembro-me de que eu gostava tanto, que por vezes brinquei sozinho: eu e as cadeiras da sala de jantar. Uma à esquerda, outra à direita, sustentando o fio de elástico branco comprado na bodega. Dois metros eram o bastante. Eles se esticavam de uma cadeira à outra para que eu pudesse saltar entre as duas linhas, executando a sequência dita há pouco. Era a mesma coreografia em vários níveis de altura. Passava a tarde toda pulando. Escondido, claro. 

Há cerca de um ano, tive uma experiência, já crescido, de uma situação que retornou em memória latente uma lembrança de quando era o menino que brincava de elástico. Em Quixaba, zona praiana de Aracati, onde minha mãe mora, presenciei uma situação que provocou um forte alvitre. No Corrente, que é onde as mulheres vão lavar roupas no interior — pelo menos em Quixaba —, que é uma corrente de água natural que forma uma espécie de lago oportuno para a lavagem de roupa. 

Nesse Corrente, as mulheres geralmente passam o dia todo lavando roupas e deixando-as para quarar, estendidas nas falésias arenosas que cercam o pequeno lago. Quando pequenas, as crianças geralmente acompanham as mães para onde elas vão. Então, elas também vão ao Corrente. Seja para ajudar a lavar as roupas, ou até para encontrar outras crianças para brincar. Para elas, ir ao Corrente é um evento. Voltando, há cerca de um ano, passei, talvez acidentalmente, pelo Corrente que fica próximo à casa de minha mãe, em Quixaba. E foi nessa ocasião que minha memória latente foi ativada.

De longe, pude ver cerca de quatro crianças que se dividiam em duplas, compartilhando o bom e velho amigo de infância: o elástico. Elas pulavam, ordenadamente em pares, na sombra dos coqueiros, ao lado do Corrente de Josué. Três meninas e um menino. Quando eles me avistaram, pude ver o desespero do menino em se abster do jogo, sentando-se no chão subitamente, a fim de evitar o flagrante iminente. Ele brincava de elástico. E, acredite, parece que até hoje pular elástico é dito como coisa de menina.

Dada a situação, vi-me obrigado a intervir. Não sei. Não queria que mais adiante esse menino viesse a passar por alguma situação, de muitas que eu passara quando criança. Não hesitei. Aproximei-me e pedi pra pular elástico com elas. As crianças me fitaram. Eu sorri. Cumprimentei as mães, duas ou três eram minhas amigas, talvez até já tenha pulado de elástico com elas, se não me falha a memória. Propus as duplas, e as crianças toparam.

A brincadeira durou cerca de vinte minutos — confesso que meu pique já não é o mesmo  e tinha que seguir com o dia. Nesse intervalo de tempo em que brincávamos, pude perceber em mim a felicidade de estar pulando elástico outra vez; mas, mais ainda, pude ver a felicidade do garoto ao perceber que ele não era o único menino a pular elástico.

Talvez ele fosse uma criança viada. Talvez… não cabe a mim, definir. Contudo, dividir essa sensação de liberdade com ele me mostrou o quão medroso eu fui um dia. As mães logo intervieram no jogo, disseram que tem que dividir, que não pode só querer pular, tem que segurar o elástico também. Eu joguei, sorri, e segui o meu caminho.

Nesse dia, nesse Corrente, nesse reencontro com a infância e o meu velho amigo, o elástico, percebi que a infância ainda existe. As crianças ainda brincam — tá, o dentro, fora, dentro, pisa sai não é mais o mesmo. Tem uma nova versão, e eu a aprendi nesse dia. Diverti-me muito. Quem sabe o menino se encoraja e joga mais. Saberá.

Mas uma coisa é certa: não existe brincadeira de menino e de menina. Existe infância. E ela não pode ser roubada.

 

*Indico, fortemente, assistirem ao filme Palmer (2021) do diretor Fisher Stevens

 

 

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