Connect with us

Crítica

SER FEIO NÃO É UM DRAMA

Published

on

Parece absurdo que ele não tenha reparado antes, mas só quando o chefe o informou e a mulher, sem qualquer pudor, confirmou é que ele olhou para o espelho como nunca antes tinha olhado. E foi aí que viu a “cara catastrófica, a cara de picado de anteontem” (Lette pode ser muito feio, mas a sua mulher não é a simpatia em pessoa).

Inconformado, decide recorrer a um cirurgião plástico que o transforma no objeto de desejo de todas as mulheres, e de alguns homens, que assistem às suas conferências. À superfície, tudo parece perfeito, porém os espelhos não refletem toda a realidade. A nova cara de Lette começa a ser copiada, e não tarda até que este comece a dar de caras com ela por todo o lado.

Estes encontros fazem com que comece a interrogar-se sobre a sua identidade. Quem sou eu? Quem não sou? O tema complexo é discutido muito levianamente por quatro atores que “num jogo de máscaras sem máscaras” representam sete personagens.

O público ri do azar de Lette, mas espreita timidamente para os quatro espelhos em palco. É que, afinal, também eles podem ser horrivelmente feios sem o saber. Este texto de ficção retrata a realidade dos dias de hoje: a obsessão pela beleza exterior, pela perfeição e pelo lucro. Mais do que pessoas agora vêm-se números, a realidade dá lugar ao potencial, ao “e se” e cada vez se perde mais a verdade.

A remodelação da personagem através de plásticas transformou-o num produto que podia ser usado e manipulado conforme os caprichos dos outros. Mas será que estes podem ditar a nossa identidade? O boneco em que de livre vontade se tornou agradava agora toda a gente menos a ele próprio. Ao deixar de se reconhecer terminou com as dúvidas que ainda poderiam existir: afinal é possível que o nosso corpo seja mais do que uma simples carapaça. Talvez deixemos que ele nos defina mais do que aquilo que pensamos. Talvez a importância que lhe é conferida ultrapasse a dada à identidade intelectual. Só talvez.

O texto cómico é exagerado, mas em nada falso: os espelhos não mentem. Ou será que sim?

São estes mesmos aspetos que o texto reposto em cena este ano procurou expor, sempre suscitando o humor e esquecendo o drama. Porque é assim que deve ser, ser feio não é nenhum drama. A menos que se comecem a aperceber disso.

Continue Reading
Click to comment

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *