Connect with us

Crónica

JUP NO DIVÃ

Published

on

Célia Soares

Célia Soares

Dos desenhos do rosto às linhas sulcadas sobre as mãos, do tom das roupas que trazem vestidas aos trejeitos que apontam a forma do coração, quando observamos as pessoas os nossos olhos contam toda uma história. Real às vezes, inventada quase sempre. E porque há tantas histórias possíveis de serem contadas, todos nós temos uma possibilidade de vidas sem fim.

Defrontamo-nos perante uma possibilidade de histórias infindáveis pois há certamente poucos terrenos tão férteis como a mente humana. Férteis no melhor, no pior e no desconhecido. Paralelamente, a história da psiquiatria reflete uma diversidade de perspetivas e uma demanda por respostas que atravessa várias dimensões do conhecimento, da biologia à psicologia, desta à sociologia e filosofia, não se reduzindo a nenhuma delas. O dualismo corpo-alma (ou biológico-psicológico), ou o binómio razão vs emoção ilustram a necessidade de uma multidisciplinaridade para o entendimento da doença mental.

Até mesmo na antítese de si mesma a psiquiatria se refugiou, e bem. Por carecer de instrumentos diagnósticos e abordagens eficazes de tratamento, a doença mental sempre esteve mais facilmente sujeita ao julgamento humano do que à avaliação médica. Não sendo a psiquiatria senso-comum, esta ferramenta alimenta facilmente o ciclo vicioso incompreensão-julgamento-estigma do qual naturalmente resultam a segregação e descuido do doente. Nos dias de hoje, apesar de um melhor conhecimento do substrato neurobiológico de diversas funções cognitivas e emocionais alteradas em diversas patologias, e de um traço genético bem estabelecido nalgumas delas, as dificuldades mantêm-se, dentro e fora da comunidade médica, fazendo do caminho a percorrer longo e árduo. Porque, esperamos nós, a psiquiatria vai sempre tratar mais do que cérebros com pessoas dentro, o que tem tanto de fascinante como desconcertante, pela variabilidade e imprevisibilidade subjacente a cada ser.

E depois de toda a ciência desmontar a dinâmica cerebral, a psicologia explanar todos os significados escondidos dos afetos latentes, e depois de toda a filosofia ser respondida, vamos certamente precisar de muito mais, de apurar a dinâmica dos silêncios: o doente é sempre maior do que a nossa melhor capacidade de entendimento.

Das histórias sem final feliz, das histórias circulares que nos prendem a alma, há sempre uma possibilidade de narrativas sem fim. Só precisamos que cuidem de nós, muito bem, ou muito mal. Todos precisamos de ser cuidados. Generalizou-se a ideia de que podemos sempre, muito egoisticamente ser felizes e saudáveis. Tanto mais felizes quanto maior a força de vontade, seja lá o que isso for. Não é conveniente estarmos tristes nem admitir que somos fracos, que temos dúvidas ou erramos nas nossas escolhas, que precisamos de ajuda. Que por vezes o medo é tão grande que nos esmaga a força. Irónico como numa sociedade em que não se tolera a tristeza se fala tanto de depressão. Psiquiatrizamos as histórias, frenamos as emoções, aceleramos o tempo até deixarmos de sofrer, de estar insatisfeitos ou inquietos. De deixarmos de viver. E para quê?

A felicidade que tanto procuramos (ou nos exigem que mostremos) não está certamente muito longe da vida, exatamente como ela é ou acontece. Só precisamos de saber caminhar com (e não contra) a bagagem das nossas vulnerabilidades físicas, psicológicas e sociais, a par dos talentos e sucessos amealhados, por vezes a muito custo, protegidos pela manta dos sonhos. Esses sonhos que nos capacitam a alma. E sermos capazes de cuidar e sentir que nos cuidam.

Se olhamos para dentro, na diagonal do passado ou na expectativa do futuro, percebemos que a possibilidade da loucura não é apanágio dos loucos, é apenas a distância que vai entre nós e nós mesmos. E porque é tão fácil sermos doentes mentais, ou porque por vezes o sofrimento se confunde com a doença, é difícil o equilíbrio entre fazer bem e não fazer mal a quem se senta do outro lado da mesa do consultório e debita todo um baú de incertezas, incoerências, angústias ou acasos mergulhados em raiva e lágrimas – e o que tem o psiquiatra a oferecer? Por vezes as palavras e os silêncios não chegam, mas os fármacos têm efeitos laterais e os rótulos aprisionam. Mesmo quando estão certos, por vezes pesam mais do que a própria doença. Não há respostas únicas, e nem sempre é possível esperar pela cura que o tempo traz, mas talvez importe primeiro cuidar a pessoa e só depois tratar a doença.

Quando o fim parece chegar, todas as vidas valem a pena serem vividas? Quando o saco das vulnerabilidades é demasiado pesado e ninguém cuida de nós, quando a alma rasga de sentido e o coração cansado atrofia, continua a valer a pena?

Acredito que, precisamente pela complexidade da nossa história e biologia, há sempre espaço para alimentar os porquês de esperança: quando o fim parece chegar, podemos sempre começar pelo princípio. Se a bagagem é demasiado pesada e ninguém nos ensinou a transportá-la, podemos reaprender e reescrever tudo de novo. Existe uma multiplicidade de histórias sem fim mas a narrativa é sempre a mesma: somos só pessoas. Pensamos e sentimos, percebemos pouco do que andamos cá a fazer. Às vezes ficamos doentes, mas não somos a doença. Temos um fim, como tudo tem um fim. E um princípio: por mais intensa que a chuva seja, o sol acaba sempre por chegar e enquanto as nuvens brilham carregadas de cinzento, somos felizes na expectativa de que o sol cresça!

Save

Continue Reading
2 Comments

2 Comments

  1. David Guimarães

    04/04/2015 at 23:48

    Excelente artigo amiga Célia! Lanças muitas ideias que poderás ainda desenvolver em futuros textos com mais minúcia. O espaço que vai desde a desmesurada psiquiatrização até uma perspectiva excessivamente ontológica é vasto e poderá, nesta rubrica, ser desmistificado. A tua abertura multidisciplinar é humilde e inteligente. A enclausura cientifica nunca é solução para uma compreensão global da complexa tragédia/comédia que é a vida humana.
    Espero ansiosamente pelos próximos artigos!
    Um grande beijinho!

  2. Célia Soares

    05/04/2015 at 20:12

    Obrigada David! Assim tentarei 🙂 beijinho grande

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *