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Crónica

UMA VALIOSA COLECÇÃO

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Tenho o caso de Richard, um jovem artista que conheci em Port-au-Prince, nos dias do terramoto. A destruição era quase total por toda a cidade, transformada num campo de escombros e cadáveres, mas Richard só pensava em criar. Vagueava pelo inferno com a cabeça iluminada por dentro. “Conheço a minha natureza e quero trabalhar nela”, dizia. Referia-se ao mundo em seu redor, que queria transformar. Criação e transformação eram para ele a mesma coisa, e por isso não fazia sentido fugir da realidade: ela era necessária, alimento obrigatório da imaginação.
Richard estudara Arte através de uma ONG, e dedicava-se desde então a pintar paredes de edifícios, corpos de bailarinos para cerimónias religiosas ou as carroçarias dos taptap, os pequenos autocarros do Haiti.
Como vivia num dos países mais pobres do mundo, quase não ganhava dinheiro. Mas nunca pensou em emigrar. “Para quê?”, dizia. “As pessoas vão para a Europa ou os EUA para trabalhar. A mim não me falta trabalho aqui”.
Tenho também Benjamin, um nigeriano que encontrei numa floresta dos arredores de Tânger, esperando a oportunidade de atravessar o Estreito. Durante anos, cruzou África, passou frio e fome a viver em tocas, e quando finalmente conseguiu o dinheiro para a travessia, o pequeno barco naufragou. Não houve sobreviventes.
“Eu ouço vozes dentro da minha cabeça”, dizia Benjamin, na sua infância na Cidade de Benin, a um amigo da sua idade, Livingstone, com quem mais tarde tentaria a aventura da emigração. “Uma voz diz-me que há um mundo maravilhoso à minha espera, num sítio qualquer. Tenho a certeza de que é na Europa. Um dia vou fugir para a Europa. Sinto que me está reservada alguma coisa de especial. Uma missão na vida, um destino fantástico. É uma espécie de visão. Não sentes o mesmo? Eu sei que a minha vida não vai ser isto aqui”.
São duas histórias sem nada em comum entre si, excepto essa loucura em que mutuamente se anulam. A perseguição, até à morte, de um sonho impossível, e a força indomável de quem sabe o que tem a fazer, e o faz.
Tenho mais. Uma compilação de heroísmos que são a minha reserva de sobrevivência. Uma colecção muito preciosa de histórias de seres livres, que não valeria nada se soubéssemos o que é a liberdade. Cada peça é única, inimitável.
Richard, Benjamin, tantos outros. Pessoas com quem me cruzei brevemente, mas nunca mais esqueci. Brilham como ouro na minha colecção.

Paulo Moura, Jornalista do jornal Público

Convidado | Quinzena da Liberdade

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