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Artigo de Opinião

VIOLÊNCIAS URBANAS, VIOLÊNCIAS SOCIAIS

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João Queirós

João Queirós

No início deste ano, Nova Iorque foi palco de um acontecimento que a muita gente surpreendeu: no término de um período de afrouxamento da ação policial – decretado pelos sindicatos da polícia em protesto contra a alegada falta de apoio e de solidariedade política por parte do mayor Bill de Blasio –, a criminalidade descera, ao invés de subir. Os responsáveis sindicais haviam selecionado aquela forma de protesto para evidenciar a sua indispensabilidade, numa altura de agravamento das tensões sociais e raciais (de que Baltimore é o mais recente foco); e as forças políticas e meios de comunicação social de direita depressa anunciaram a “onda de criminalidade” que desse protesto resultaria. A verdade, porém, é que não houve aumento de criminalidade, pelo contrário; aparentemente, a “insubordinação” da polícia fizera mais bem do que mal à cidade, deitando em grande medida por terra a tese de uma relação direta entre proatividade da ação policial e segurança urbana.

As políticas de “tolerância zero”, muito comuns nas cidades norte-americanas, de onde têm sido exportadas para os mais diversos pontos do globo, creem que a proatividade das forças policiais é indispensável à garantia da segurança de pessoas e bens. A ideia fundamental é a de que o policiamento rigoroso dos comportamentos, em especial daqueles que redundam nas chamadas “pequenas ofensas” ou na “pequena criminalidade”, é indispensável à promoção do sentimento de segurança e ao evitamento de crimes de maior dimensão. Na base desta ideia está uma “teoria” conhecida como “teoria das janelas partidas”, proposta em 1982 por dois cientistas políticos conservadores, George L. Kelling e James Q. Wilson. Segundo ela, se uma janela de um edifício é partida e deixada por reparar, então depressa todas as janelas desse edifício acabarão igualmente partidas. Aplicada ao domínio da segurança urbana, isto significa policiar e punir de forma severa a pequena criminalidade, de forma a dissuadir ou evitar a concretização de crimes de maior dimensão. Para muitos, a ideia é puro “bom senso”; mas a sua aplicação prática tem revelado quão falaciosa e improducente ela verdadeiramente é.

Com efeito, o que a “teoria das janelas partidas” propõe é que se ataquem as manifestações dos problemas sociais, não as suas causas. As desigualdades económicas e de poder permanecem incontestadas e são descartadas as implicações que elas possam ter em matéria criminal: o que importa é perseguir e punir a “desordem”, a “incivilidade”, esteja ela onde estiver. Quando não aparece como justificação a posteriori (“cortámos o mal pela raiz”), a “teoria das janelas partidas” é motivo para acossar, estigmatizar e criminalizar os habitantes das zonas urbanas mais pobres, os jovens das periferias, os sem-abrigo.

Toda a “violência urbana” radica, porém, em alguma forma de “violência social”, como bem notam, entre outros, os sociólogos franceses Stéphane Beaud e Michel Pialoux (Violences urbaines, violence sociale. Genèse des nouvelles classes dangereuses, Paris, Fayard, 2003). A “desordem” e a “incivilidade” que as políticas de “tolerância zero” pretendem confrontar, a bem da “segurança e da qualidade de vida comuns”, mais não são do que produtos das violências que sobre os deserdados da cidade são exercidas pelo recrudescimento aviltante das desigualdades de riqueza e de poder, pelas limitações e mecanismos excludentes dos mercados de emprego, pelas promessas incumpridas do sistema escolar, pelas insuficiências e discriminações das políticas sociais. O confronto de tais violências só resultará verdadeiramente se se atuar não casuisticamente, mas de forma coletiva e sistemática, não à superfície, mas no âmago do sistema económico, do sistema político e do Estado.

Nestes “dias violentos”, em que as “respostas imediatas” são o que mais se exige e se propõe, o que os pífios resultados da “insubordinação” da polícia de Nova Iorque trazem à evidência é que reparar os vidros partidos de um edifício com alicerces defeituosos nada fará para impedir ou sequer retardar a eventual derrocada.

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