Cultura
WIM MERTENS DE SORRIR E SONHAR POR MAIS
Quando Wim Mertens se senta ao piano, toda a sala se transforma no seu palco. Acontece isto quando, em casa, ouvimos os seus álbuns, aconteceu isto ontem, na Casa da Música, quando nos sentámos na Sala Suggia para o ouvir.
Acompanhado apenas pelo sublime saxofonista e clarinetista Dirk Descheemaeker, os dois transportaram-nos para um mundo deles, que connosco partilharam sem restrições. A primeira nota levou-nos para uma atmosfera europeia, de ruelas estreitas e sombrias, em que o clarinete traçava os nossos passos e o piano (o grande piano de cauda) construía tudo o que nos rodeava: as casas, as pedras da calçada, o nevoeiro húmido. A voz, com que pautava algumas músicas, cantava um idioma que roçava todos os idiomas do mundo sem que fosse, de facto, algum. Pois, na verdade, a voz era somente um instrumento a juntar aos outros dois, fundindo-se em perfeita simbiose. Onde acabava o piano e entrava o clarinete, ou onde terminava o clarinete e começava a voz, era impossível alguém dizer. Todo o idioma era, no final de contas, a própria música – minimalista, em que todos os sons nos faziam navegar de uma forma diferente, ora em ondas calmas e azúis, ora em tornados violentos, mas sempre, sempre, com um equilíbrio no meio da entropia, não nos deixando afogar naquele mar profundo.
A sala estava três quartos cheia. No palco, apenas um piano, um teclado eléctrico e alguns microfones. Uma iluminação muito simples-um foco sobre cada um dos músicos e alguns holofotes que alternavam entre o verde, o azul e o amarelo. A cada música, Wim Mertens contava 1, 2, 1, iniciando os acordes graves e rítmicos de dança de bater o pé no chão. O saxofone ou o clarinete entravam logo a seguir, acompanhando a melodia ou voando em rumo independente. Tocava curvado, acompanhando a música com os movimentos do corpo. A sua entrega tinha o apogeu quando, após o fôlego final de cada música, lançava os braços ao ar em exaustão. No seu jeito desajeitado, da sua boca não saiu mais nenhum som para além do que acompanhava as músicas. Não falou uma única vez com o público. Mas também não foi preciso: no fim de cada música, levantava-se e agradecia comovido, apontando para nós, como que mostrando que o deixávamos sem as palavras que não tinha, e salientava o outro músico, dizendo-nos que sem o seu sopro incólume nada seria tão bonito. Com uma humildade notável, era à vez, que ambos se dirigiam para o público. Wim Mertens não escondia algumas lágrimas e apontava para o coração. A música dos dois chegava fisicamente a zonas do cérebro onde não a conhecíamos – os músculos do sorriso, as glândulas lacrimais, o músculo cardíaco.
Foi muito, muito bonito. Após uma primeira parte sempre no grande piano de cauda, começou (e finalizou) a segunda parte, no teclado eléctrico. Um som mais envolvente, por vezes distorcido, com os acordes graves a aprofundar uma melodia periclitante. Foi comovente, sem ser lamechas. Não há muitos músicos com esta capacidade: a de nos fazer abstrair de qualquer consciência racional e de nos conduzir apenas com o som, fazendo com que todas as partículas do corpo naveguem em ondas sonoras.
O público estava aos seus pés. Após uma ovação em pé, tomou o palco sozinho e mostrou-nos a sua obra mais recente, com um teclado cada vez mais distorcido e ecoante, como se tudo fosse uma torrente ininterrupta de notas.
No encore final, voltou já com o grande Dirk Descheemaeker, sempre certeiro em ambos os instrumentos que ia alternando. E o público explodiu na tão aguardada “Struggle for Pleasure” que partiu os corações até dos mais resistentes, neste final maravilhoso.
Exames? Crise? Futuro? Durante 2h30, todo o mundo foi música, para quem esteve na Casa da Música ontem.